Análises

Trilha Hoerikwaggo: um prêmio no terceiro dia

Com 11 km de extensão, esse trecho entre Simonstown e o bairro praieiro de Kommetje é o mais curto, mas oferece um belo banho de represa.

Pedro da Cunha e Menezes ·
19 de maio de 2011 · 14 anos atrás

Pedro da Cunha e Menezes*

 

Com 11 km de extensão percorridos em pouco mais de 4 horas e meia, o terceiro dia da Trilha Hoerkwaggo, entre Simonstown e o bairro praiero de Kommetje é o mais curto de todos. Não é rico em vistas, mas em compensação oferece a oportunidade de um belo banho na represa de Kleinplass.

Depois de duas jornadas pesadas, Sandra, Ivan e eu não reclamamos da relativa moleza do percurso. Até porque seu início é bem enganador. Deixamos o hotelzinho histórico que nos abrigou em Simonstown e, depois de uns dez minutos no asfalto, encaramos  uma subidona íngreme que nos fêz esvaziar de cara uma de nossas garrafas d´água.

Uma vez lá em cima, o relevo aplaina, mas aparece uma dificuldade nova. A falta de sinalização. Como escolhemos percorrer a Hoerikwaggo sem guia e antes da sua sinalização ser instalada, temos que parar amiúde para checar a rota. Felizmente não há falta de bons mapas de trilhas na África do Sul. No caso específico do Parque Nacional da Montanha da Mesa, se o excursionista não for um analfabeto cartográfico, a chance de se perder tende a zero. Peter Slingby, um trilheiro local com pendores de geógrafo, publicou uma série de quatro mapas detalhados que desvendam todos os caminhos da Península do Cabo. De certa forma, contudo, esses mapas nem chegam a ser necessários.

Existe na África do Sul um instituto que emite certificados de qualidade para trilhas (uma espécie de ISO-Trilhas). Para que um caminho seja aprovado, a drenagem tem que estar bem feita, a trilha limpa e desobstruída, os atalhos fechados, os trechos íngremes dotados de degraus e os abrigos em bom estado.Ora, quem já palmilhou muito, como Sandra e Ivan, percebe logo a diferença entre uma trilha assim (que é o caso da Hoerikwaggo) e outras com manutenção inferior. Não chegamos a nos perder.

Após cerca de duas horas, alcançamos a represa de Kleinplas. Apesar de não ficar à beira da estrada, encontramos ali um bom número de frequentadores, cuja variedade de interesses dá bem a dimensão da tolerância do manejo no Parque. Enquanto dávamos um mergulho, dezenove tropas de escoteiros passaram apressadas, competindo em um enduro de regularidade. Não foi só. Também testemunhamos um entra e sai interminável de mountain bikers e, dividimos o panorama com um par de casais passeando com seus cachorros.

Pois é. Essa cena seria impensável em um Parque brasileiro. Em Pindorama, ainda não entendemos que o visitante é um aliado natural da causa conservacionista e que, sobretudo em um parque urbano, o esforço de manejo para acomodar os diferentes usuários se paga no médio prazo em termos de apoio político para as iniciativas ambientais do Governo do dia.

No caso do PARNA da Montanha da Mesa, há mais de 150 quilômetros de estradinhas de terra e de trilhas single trek com livre acesso aos ciclistas de montanha. Obviamente eles pagam uma taxa extra pelo direito de causar maior impacto aos caminhos. Os recursos são destinados a um reforço na manutenção dessas mesmas trilhas e, no final, o impacto acaba sendo mínimo, ao tempo em que se cria um enorme grupo de novos apoiadores do Parque Nacional. Já no que toca aos cães, a Unidade de Conservação reconheceu que, estando no meio da cidade, teria mais a ganhar acomodando a visita desses animais exóticos do que transformando seus donos em uma horda de inimigos.

Verificou-se então em que áreas a presença de canídeos seria menos impactante. Escolheu-se cerca de doze trilhas, onde não há significativa presença de fauna nativa , que em seguida forma liberadas para os caninos, desde que na coleira. O resultado produziu um parque democrático e inclusivo, cujo manejo é guiado pela missão imperiosa da conservação da biodiversidade, ainda temperada pelo bom senso.

Deixamos a represa de Kleinplas para trás com o sol já querendo baixar. O banho estava ótimo, mas ainda havia duas horas e meia a percorrer. Uma hora no plano, uma hora de desce e sobe e meia hora sobre uma paisagem lunar.  Que devastação! A colina de Slangkop ardeu cerca de três semanas antes de passarmos por lá. O Serviço de Parques da África do Sul empregou três helicópteros e cerca de 100 bombeiros no esforço de debelar o incêndio. Ao final impediu que o fogo se propagasse para uma área maior, mas justamente o trecho cortado pela Hoerikwaggo ficou pelado.

É uma imagem muito triste que, no entanto, dá lugar a suspiros de encantamento logo adiante quando a trilha começa a bordejar a beira da montanha e abre vistas belíssimas do mar e litoral. Antes de descermos para o abrigo de Kommetjie, onde passaríamos aquela noite, ainda paramos para tirar umas fotos em mais uma casamata construída pelo exército sul-africano durante a Segunda Guerra Mundial para vigiar os U-Boat alemães. De lá para o aconchego da cama foi um pulo. Menos de quinze  minutos ladeira abaixo.

O abrigo? Mereceria uma coluna inteira. É difícil descrevê-lo em palavras. Foi projetado por um arquiteto-paisagista. De longe é quase imperceptível, pois se mescla muito bem com a natureza à sua volta.  Possui seis chalés com duas camas cada um. As paredes e o teto de cada chalé são de lona. Já o chão é de madeira proveniente da retirada de espécies exóticas, que começam a ser erradicadas de florestas nacionais incorporadas ao Parque.

Também de madeira de pinus e eucaliptus é a área de convívio do abrigo. Um enorme salão com lareira, mesa, cadeiras e uma cozinha completa com panelas, copos, pratos e talheres – tudo com o logotipo do Serviço de Parques.

A energia que dá a luz e provê o banho quente é gerada por de placas solares. Os resíduos são tratados antes de serem bombeados para a rede de esgotos. A decoração é de bom gosto e, sempre que possível utiliza itens do próprio Parque. O grande destaque são as luminárias colocadas dentro das vértebras de uma baleia que encalhou e morreu na praia de Noordhoek alguns anos atrás.

Ficamos boquiabertos, pois nos sentíamos em um hotel de charme em plena trilha. Com efeito, o local é tão acolhedor que atrai não trilheiros. Quem está percorrendo a Hoerikwaggo tem prioridade para reservar o abrigo, mas desde que ele não esteja lotado,outras pessoas também podem pernoitar ali. No nosso caso, dividimos a experiência com um casal de septuagenários sul-africanos. Chegaram até ali de carro. Segundo nos contaram, nâo têm mais pernas para trilhar percursos como a Hoerkiwaggo, mas ainda gostam de desfrutar a natureza. Passam as manhãs admirando a paisagem, e de tarde dão pequenas voltas pela região. Caminham a distância que sua idade permite. São entusiastas da Hoerikwaggo: “ não temos mais saúde para fazer a trilha toda, mas poder desfrutar deste pedacinho já é um presente maravilhoso”.

Sandra, Ivan e eu nos entreolhamos. Maravilhoso sim. Presente não. Fomos apresentados a gente como Brett Myrdall e Paddy Gordon, que projetaram e dirigiram a construção da trilha. Sabemos o trabalho que deu, o esforço que custou. Compreendemos também que eles e os demais funcionários do Parque Nacional da Montanha da Mesa engajados no projeto não consideram que a Hoerikwaggo seja uma dádiva. Pelo contrário, para eles, não fizeram mais do que sua obrigação de servidores públicos.

Na próxima coluna, vamos de Kommetjie até Silvermine. Vai ser um dia bastante longo e cansativo, mas com praia, naufrágios, montanha (muita subida) e um belo banho de lago no final.

*Com participação de Sandra e Ivan Amaral

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