O processo de tomada de decisões acerca da conservação e manejo da nossa fauna silvestre tem tido como base dois preceitos fundamentais: a suficiência da biologia e a autoridade do especialista. Em outras palavras, assume-se que a contribuição exclusiva da biologia garanta as melhores decisões de conservação e manejo e que, consequentemente, tais decisões devam ser tomadas por especialistas em ciências biológicas (biólogos e também veterinários, agrônomos e engenheiros florestais), em virtude de seu treinamento e experiência nessa área.
A aplicação desses preceitos trouxe resultados expressivos. No entanto, a fauna silvestre continua ameaçada por atividades humanas e, agora com um fator complicante, as opiniões e interesses do público leigo acerca do assunto estão cada vez mais fortes e diversificados. À medida que a sociedade se segmenta em grupos com interesses cada vez maiores e mais variados (e eventualmente conflitantes!) em relação ao uso e conservação dos recursos naturais, o manejo da fauna silvestre deverá se beneficiar de uma base mais ampla de fundamentos, que contemple a necessidade de integração entre múltiplas disciplinas e o desejo de diferentes setores da sociedade de participar das decisões.
Muldisciplinaridade
Os problemas que a conservação e manejo da fauna silvestre se propõem a resolver não são, em última análise, problemas com a fauna e sim, problemas com as pessoas. O problema com o soldadinho-do-araripe, por exemplo, não é a especialização de seus requerimentos ecológicos (esse pássaro depende das escassas matas úmidas das encostas da Chapada do Araripe), mas a degradação de seu habitat pelo homem. O problema com a onça-pintada não é sua dieta, que ocasionalmente inclui animais domésticos, mas o fato de que é perseguida por pecuaristas e caçadores.
A resolução desses problemas, portanto, vai além do escopo das ciências biológicas e deveria levar em conta o que as pessoas envolvidas pensam e fazem. No entanto, os profissionais dedicados à conservação e manejo da fauna silvestre geralmente não são treinados para pesquisar, entender e influenciar pensamentos e ações humanos; na universidade, continuam tendo como referência os livros-textos de Biologia da Conservação e, por força das circunstâncias, acabam fazendo ao longo da carreira o papel do cientista social, do antropólogo, do relações públicas e do comunicador, com base muito mais na intuição do que no extenso e sólido corpo teórico e de resultados empíricos por trás de cada uma dessas disciplinas.
No início do século XX, Aldo Leopold, um dos fundadores e maiores pensadores do movimento conservacionista, já chamava a atenção para a importância e urgência da integração entre ciências biológicas e ciências sociais para a efetividade da conservação e manejo dos recursos naturais. O século mudou, mas o desafio da multidisciplinaridade no manejo de fauna silvestre continua o mesmo.
Consideração aos “stakeholders”
Foi em resposta ao declínio das populações de animais silvestres que surgiu o conservacionista; profissional treinado em ciências biológicas e dedicado a defender os “interesses” exclusivos da vida silvestre, quais sejam, manter a abundância e distribuição originais (o que implica também na proteção do habitat) e, desse modo, garantir a perpetuidade das espécies.
Ao mesmo tempo, surgia nos Estados Unidos o profissional de manejo de fauna, também treinado em biologia, mas com a missão de conciliar os interesses da fauna silvestre com os interesses daqueles segmentos da sociedade que, de alguma forma, afetam ou são afetados pela fauna, ou seja, os “stakeholders” (com o perdão do anglicismo; não conheço um bom equivalente desse termo em português e qualquer sugestão do leitor é bem-vinda). Como naquela época os stakeholders mais influentes eram os caçadores esportivos, os primeiros gestores de fauna tratavam de garantir que as populações de animais de caça fossem mantidas em níveis que satisfizessem aos caçadores.
O manejo de fauna nos Estados Unidos evoluiu desde então, adaptando-se a um conjunto cada vez mais diversificado de stakeholders cujas expectativas de envolvimento nas decisões são cada vez maiores. Caçadores continuam sendo importantes, mas o gestor de fauna agora lida também com o crescente contingente de pessoas que buscam observar e interagir amistosamente com a fauna silvestre, seja nos parques nacionais ou no quintal de suas próprias casas; com os produtores rurais em conflito com lobos e pumas, animais que retornaram às terras de onde foram um dia extirpados e passaram a ser vistos como uma ameaça à pecuária; com a questão das doenças transmitidas pela fauna silvestre aos seres humanos; e ainda com o bem estar dos animais e a conservação das espécies.
As pessoas – os stakeholders, especificamente – acabaram se tornando o componente central do manejo de fauna contemporâneo nos Estados Unidos. As instituições envolvidas – universidades e agências de vida silvestre – se esforçam para encontrar a melhor maneira de incorporar ao manejo as chamadas Dimensões Humanas da Fauna Silvestre; uma abordagem que aplica as ciências sociais (economia, antropologia, psicologia, sociologia, educação, comunicação de massa, marketing, etc) para identificar, entender, envolver e influenciar os diferentes stakeholders, visando o maior benefício possível tanto para a fauna silvestre quanto para os próprios stakeholders.
Capacidade de Suporte Cultural
Falar em Dimensões Humanas da Fauna Silvestre não significa diminuir a importância do conhecimento biológico ou ecológico nas decisões em conservação e manejo. Como as políticas públicas para a conservação das espécies ameaçadas de extinção em nosso país são guiadas fundamentalmente por informações biológicas (tais como natalidade, mortalidade, comportamento reprodutivo e subsequente dinâmica populacional) e ambientais (sobre aspectos do habitat que determinam a capacidade de suporte biológico, tais como disponibilidade de alimento e água, cobertura vegetal e espaço), a necessidade de aprofundar tal conhecimento é maior do que nunca.
A integração das dimensões humanas, biológicas e ambientais no manejo da fauna simplesmente expande as bases para a tomada de decisões, e é tão mais promissora quanto maior e mais variado for o interesse que os stakeholders têm na espécie em questão e no seu manejo. Enquanto espécies que despertam pouco interesse do público podem ser protegidas pelas intervenções tradicionais da conservação, das quais a criação de unidades de conservação é a mais emblemática, animais que evocam grande interesse e/ou interesses conflitantes em segmentos significativos da sociedade – predadores de grande porte e primatas, por exemplo – deverão se beneficiar do manejo integrado aqui descrito.
Para o manejo de um predador de grande porte em uma área povoada, talvez tão importante quanto o conceito de capacidade de suporte biológico deva ser o conceito de capacidade de suporte cultural; não basta descobrir que o habitat naquela área comporta 10 onças-pardas adultas, por exemplo, se as pessoas que também vivem naquela área só tolerarem um décimo dessa abundância.
Em outros casos, diferentes stakeholders têm percepções conflitantes acerca do tamanho aceitável da população de um animal silvestre; visitantes de um parque urbano no Rio de Janeiro, por exemplo, talvez preferissem que os divertidos micos-estrela fossem mais abundantes (ficaria mais fácil alimentá-los!), enquanto as autoridades médicas locais, preocupadas com o risco de zoonoses, preferissem que sua abundância fosse um pouco menor, e os biólogos do parque, que não gostam de espécies introduzidas, preferissem que sua abundância fosse bem menor.
A coexistência entre gente e fauna silvestre nas próximas décadas vai depender da nossa habilidade de identificar e influenciar os limites das capacidades biológica e cultural, e de entender e reconciliar as diferenças de interesse acerca da fauna. Manejo sustentável da fauna significa também manejo de gente.
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