A China está mudando e não é por causa da crise financeira que já atingiu o país. O governo indica que, no último trimestre, a taxa de crescimento já caiu para 9%. Parece pouco, mas não é. Se a economia chinesa crescer menos de 8% ao ano, joga na pobreza mais de uma população brasileira e deixa por mais tempo 70% da sua população excluídos da festa que rolava até agora nas ilhas de capitalismo do imenso continente. A China está mudando de atitude com relação ao desafio global do clima e buscando um novo modelo de desenvolvimento, que está registrado nos planos do Partido como “civilização ecológica”.
Os sinais são vários. O primeiro, que considero tipo pré-requisito, é ter maior sinceridade na análise de sua pegada de carbono. Pois não é que o governo chinês reconheceu, há algumas semanas, que suas emissões alcançaram as dos Estados Unidos, maior emissor do planeta? Reconhecer o status de grande emissor é o estágio preliminar de qualquer tomada de posição mais afirmativa com relação à política do clima. Tem gente dizendo que a China já ultrapassou o EUA. Mas é detalhe. Admitir o empate, é aceitar dividir o discutível título de maior emissor do mundo.
O vice-chefe da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e a Reforma, que é responsável pela política sobre mudança climática, Xie Zhenhua, declarou à imprensa que “de acordo com os dados que temos, as emissões chinesas se igualaram às dos Estados Unidos”. É o primeiro reconhecimento oficial de um alto funcionário governamental de que a China está no topo do ranking dos emissores de gases de efeito estufa. Ele disse, também, que a mudança climática já apresenta “ameaças reais ao sistema ecológico chinês e ao desenvolvimento econômico e social do país”. É um comecinho. Ainda está no nível de vice-chefe do terceiro escalão do governo. Isso, na política chinesa, significa um sinal inicial de mudança. O próximo passo pode ser uma declaração mais específica ainda do Chefe, ou pode saltar e chegar ao vice-ministro encarregado. Se for muito rápido, alcança um ministro de segundo escalão. Mas, para para valer mesmo, tem que ser admitido pelo presidente Hu Jintao. Dificilmente isso acontecerá nesse estágio da mudança de atitude chinesa. O melhor que se pode esperar, nos próximos meses, é que o primeiro-ministro, Wen Jiabao trate do assunto. Ele é uma espécie de precursor liberal de Hu Jintao. Sempre parece mais avançado que o presidente. Mas tudo indica que os dois agem em sintonia e a distância entre eles permite manter o equilíbrio que consideram necessário entre persistência e mudança, tendo em vista os objetivos estratégicos da China.
Energia Nova
Até agora, o primeiro-ministro avançou apenas até o reconhecimento genérico do desafio climático. Em discurso na abertura da Conferência de Pequim de Alto Nível sobre Mudança Climática, Desenvolvimento Tecnológico e Transferência de Tecnologia, ele disse que a mudança climática é uma questão fundamental para a comunidade internacional, que “afeta o ambiente de vida da humanidade e a prosperidade e desenvolvimento de todos os países. O governo chinês sempre teve uma abordagem responsável em relação à mudança climática, que levamos muito a sério”. Segundo ele, conservação de recursos naturais e proteção ambiental “são uma política básica do Estado e de sua estratégia de desenvolvimento nacional”. Disse, ainda, que estão fazendo um “esforço tremendo” para desenvolver energia limpa, como hidreletricidade, energia nuclear, energia eólica e biogás rural. De 2000 a 2008, informou, a capacidade instalada em energia eólica da China aumentou de 340 mil KW para 10 milhões de KW; a de energia hidrelétrica, subiu de 79,35 milhões de KW, para 163 milhões, e de energia nuclear, de 2,1 milhões de KW, para 8,85 milhões de KW. É importante, porque significa ter deixado de produzir o equivalente em KW em termelétricas a carvão, a principal fonte de energia da China.
O Climate Group, uma entidade baseada em Londres, que reúne grandes empresas, governos e lideranças mundiais, dedicada a ajudar no progresso rumo a uma economia de baixo carbono, confirma. Segundo relatório divulgado pela entidade recentemente, a China reduziu em 60% a intensidade energética de seu PIB, desde 1980, e deve reduzi-la em mais 20% até 2010. Uma meta que o premier Wen Jiabao também fez questão de salientar em seu discurso. Para o Climate Group, a China já é o país líder em energias renováveis, com 152 gigawatts instalados. De importador, tornou-se um dos maiores produtores de tecnologia fotovoltaica solar. Seus seis maiores produtores têm ativos combinados no valor de US$ 15 bilhões. Em 2007, produziu 820 megawatts com essa tecnologia, menos apenas que o Japão. O investimento do país em energias renováveis equiparou-se ao da Alemanha, em 2007, chegando a US$ 12 bilhões. As instalações de energia eólica cresceram 120% no ano passado e o Conselho Global de Energia Eólica estima que, em 2009, se tornará o líder mundial na produção de turbinas eólicas. Tudo é pouco, diante da enormidade do problema chinês, mas deixa seus companheiros dos BRICs, Brasil, China e Rússia, anos-luz para trás.
Dobradinha no Comando
Uma questão crítica é quanto a crise financeira e econômica global reduzirá esse impulso chinês rumo às tecnologias de baixo carbono. Wen Jiabao tratou desse tema também em seu discurso. Disse que “presentemente, o avanço da crise financeira global e a óbvia desaceleração da economia mundial impõem desafios severos ao desenvolvimento econômico de todos os países e para as vidas de seus povos. Em tais circunstâncias, nosso compromisso com a mitigação da mudança climática não pode vacilar e nossas ações não podem desacelerar”.
O presidente chinês, Hu Jintao, já avançou alguns passos importantes no reconhecimento da importância da mudança climática. Em discurso na reunião do “coletivo de estudo do politburo”, que tinha como agenda a mudança climática, no começo deste semestre, ele disse que a China está em um “estágio crucial de avanço para uma sociedade mais desenvolvida de uma forma integral. Também está em um estágio de aceleração de sua industrialização e urbanização. A tarefa de desenvolver a economia e melhorar as condições de vida do povo continua muito árdua, e árdua também é a tarefa de lidar com a mudança climática. Enfrentar apropriadamente a mudança climática envolve o desenvolvimento econômico e social da China como um todo, os interesses pessoais do povo e os interesses fundamentais do País”. O presidente orientou o trabalho político do politburo, dizendo que o “XVII Congresso do Partido definiu explicitamente a tarefa de construir uma civilização ecológica. Devemos dar proeminência à construção de uma sociedade que economize recursos e seja amigável ao ambiente. Isto deve ser implementado em cada unidade e em cada família”.
Essa dobradinha entre o presidente e o premier define o rumo político para todo o governo chinês e vai marcando a mudança gradual de posição interna e internacionalmente. O encontro de Pequim sobre tecnologia, co-patrocinado pelo PNUMA, onde Wen Jiabao fez o discurso que comentei acima, é um marco importante dessa trajetória, porque chega ao âmbito da diplomacia chinesa. Até Bali, a China vinha, por opção, mantendo uma atitude de baixa projeção e, muitas vezes, escondeu-se convenientemente atrás da posição reativa da diplomacia brasileira em relação à questão climática. Já em Pequim, os chineses falaram mais claro e mais grosso. Eles continuam a defender, como o Brasil, a tese das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, tanto Hu Jintao, como Wen Jiabao continuam pondo ênfase nesse ponto. Mas está claro que o que representa a responsabilidade diferenciada que a China está disposta a assumir tem evoluído bastante. Em Pequim, pela primeira vez, o governo chinês fez uma proposta concreta. Defendeu a criação de um órgão intergovernamental independente, para administrar um fundo cujos recursos poderiam ultrapassar os US$ 250 bilhões, se todos os países desenvolvidos pingassem 1% do PIB, como foi proposto nos “brain-storms” de Pequim. É improvável que isso aconteça, mas 10% disso já daria para obter muito mais resultado do que se conseguiu até agora no capítulo sobre transferência de tecnologia da Convenção do Clima. Guan Qingyou, pesquisador dedicado à mudança climática na universidade de Tsungua diz que a eleição de Barack Obama põe mais pressão ainda sobre a China, para que ela mostre iniciativa.
Mudança Diplomática
A China está, obviamente, sob enorme pressão externa e interna. O governo tem tido que intimidar e reprimir milhares de pessoas que se manifestam publicamente em protesto contra a poluição, a falta de água, a desertificação, a chuva ácida e outros graves problemas trazidos pela escala fenomenal que os problemas ambientais atingiram no país. Algo está de fato mudando por lá e essa mudança se refletirá na atitude da sua diplomacia nas conversações sobre o clima. O economista Nicholas Stern esteve lá há duas semanas e me disse que viu sinais claros de que o país finalmente está resolvido a enfrentar a mudança climática. Stern está fazendo um enorme esforço para ajudar a romper o impasse na política global sobre mudança climática. Esteve na China, no Brasil e na Índia este mês. Tem sido bastante tolerante e otimista com as posições oficiais destes países, porque considera crucial que eles mudem de posição e aceitem um grande acordo, que os colocaria no grupo dos países com metas compulsórias até 2020. Até lá, Stern tem proposto que se aceite os planos e metas de cada um, sem torná-los parte do acordo Pós-Kyoto. Mas, a partir do início da terceira década do Século XXI, eles e “mais alguns outros” teriam que passar a aceitar metas compulsórias e mais exigentes, “se os países mais desenvolvidos tiverem cumprido suas metas até 2020 e estiverem efetivamente criando mecanismos que permitam aos menos desenvolvidos mitigar emissões e se adaptar à mudança climática inevitável”, disse em São Paulo, em várias ocasiões e em entrevista exclusiva para Míriam Leitão, no seu programa na GloboNews, que pode ser vista aqui.
A reunião de Pequim pode ter sido o marco zero para a nova diplomacia chinesa. No seu discurso de abertura, o premier Wen Jiabao disse que os países mais desenvolvidos precisam adotar uma política agressiva para transferir tecnologia ambientalmente eficaz e know-how aos outros países como está na Convenção do Clima. “Muitos países em desenvolvimento estão experimentando rápido crescimento econômico e precisam ter acesso a tecnologias limpas urgentemente para tornar seu desenvolvimento ambientalmente amigável. E [nesse campo] não tem havido progresso substancial até agora”. Há consenso entre os principais analistas da política climática que a China está abandonando a postura que sempre teve nas COPs, quando preferia ficar na retaguarda, para uma posição de maior liderança. Não é possível liderar, sem aceitar condicionalidades com relação a suas próprias emissões. O professor de diplomacia ambiental da universidade de Pequim, Zhang Haibin, afirma que a “China pode estar fazendo essas demandas [no campo da tecnologia] para aceitar compromissos e fazer concessões em outros temas. A China pode admitir cortes absolutos em suas emissões de gases de efeito estufa mais cedo do que se imagina, entre 2025 ou 2030”. Quem sabe acaba admitindo que a proposta de Lord Stern of Brentford, mais conhecido como Nicholas Stern, e que, certamente, tem o apoio do governo britânico, embora o economista diga que não tem mais posição governamental, apenas acadêmica, na London School of Economics and Political Science.
Acordo Possível
Essa proposta representa um compromisso aceitável por China, Índia e Brasil, entre outros. Esses países teriam que adotar políticas climáticas, com metas voluntárias, porém verificáveis, até 2020, e se enquadrariam no sistema de metas compulsórias, a partir deste ano. Em contrapartida, os países desenvolvidos teriam que cumprir as metas compulsórias, estabelecidas no pós-Kyoto, até 2020 e investir na qualificação dos países em desenvolvimento em tecnologias verdes. Não é uma proposta agressiva o suficiente para a gravidade que a mudança climática vem assumindo. Mas talvez seja a mais viável, Pior seria chegar ao final da reunião de Copenhagen, sem sequer um esboço avançado de um acordo pós-Kyoto, implementável a partir de 2015.
Se a hipótese dos analistas sobre a provável mudança na posição chinesa se confirmar. A reunião das partes da Convenção do Clima e dos signatários do Protocolo de Kyoto, na Suécia, poderia ter dois marcos fundamentais de uma nova era na diplomacia do clima. A nova atitude dos Estados Unidos, já então sob a presidência Obama, que se espera seja de liderança na formatação do melhor acordo possível para a governança climática na sucessão do Protocolo de Kyoto, e a virada da China. O Brasil corre o risco de ficar isolado e sem influência, se não mudar também de posição e apresentar iniciativa diplomática mais criativa, mais cooperativa e alinhada aos novos ventos que parecem soprar de Pequim e certamente virão de Washington.
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