Reportagens

Revolução pelo desastre

Além de alterar a geografia e exterminar parte da população, desastres naturais como as tsunamis mudam a história. Foi o caso do vulcão Krakatoa, na Indonésia.

Manoel Francisco Brito ·
4 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

Grandes catástrofes têm poder que vai muito além da sua capacidade de matar humanos em larga escala e alterar para sempre a geografia nas regiões onde acontecem. Terremotos e maremotos que ocorreram no passado também influíram na derrubada de governos, transformaram religiões e, em algumas ocasiões, varreram civilizações inteiras do mapa. Não há portanto razão para achar que as conseqüências da tsunami que afogou boa parte do sul da Ásia no dia 26 de dezembro ficarão restritas aos trabalhos de reconstrução das áreas atingidas e no controle de eventuais epidemias.

A sucessão de vagalhões que chegou ao litoral de 13 países depois do Natal, inundou sociedades que já estavam em larga medida fragilizadas ou pela extrema pobreza ou por tênues balanços políticos. As Maldivas correm o risco de sumir como país, pois lhe falta economia com vigor suficiente para juntar os cacos deixados pelo desastre. No Sri Lanka, país dividido por décadas de guerra civil, teme-se que a tsunami possa ter rompido o equilíbrio de poder entre a guerrilha Tamil e o governo central e que isso provoque um recrudescimento das hostilidades entre os dois lados. Na Indonésia, a preocupação é que a catástrofe ajude na expansão do fundamentalismo islâmico.

No caso indonésio, isso inclusive já aconteceu uma vez, há mais de 100 anos, quando o vulcão Krakatoa entrou em erupção, explodiu e provocou 4 imensas ondas, uma delas com 30 metros de altura. As vagas devastaram as ilhas de Sumatra e Java, parte da Indonésia, que na época estava sob domínio colonial holandês, e deixaram um saldo de 36 mil mortos. A explosão aconteceu no dia 27 de agosto de 1883 e, como conta Simon Winchester em Krakatoa – o dia em que o mundo explodiu (Objetiva, 429 páginas), livro recém-lançado no Brasil, o governo da Holanda, acordou rápido para a magnitude da catástrofe.

Seus funcionários coloniais comportaram-se de maneira exemplar, enterrando rápido os mortos, alimentando os sobreviventes e cuidando para evitar focos de epidemias. Na Holanda, a população se mobilizou, coletou donativos e os enviou à Indonésia, onde ao que parece foram distribuídos de maneira ordeira e equânime. O rei criou um fundo especial, cujo dinheiro foi aplicado nas obras de reconstrução da colônia. A mobilização coletiva, no entanto, durou pouco. E os benefícios que ela produziu ficaram localizados em áreas dominadas por empresas ou fazendeiros holandeses. A população local, abandonada, acabou prestando atenção ao que se falava na Península Arábica, onde naquele instante predominava um islamismo militante, fundamentalista e principalmente anti-ocidental.

Até então, o islamismo que se desenvolvia no arquipélago indonésio, explica Winchester, tinha um caráter moderado, onde a fé mantinha-se à distância da política. Mesmo numa situação em que o domínio colonial holandês começava a dar ares de exaustão e criar descontentamentos, pelo menos até a explosão do Krakatoa, não havia traço nem de fundamentalismo religioso nem tampouco de hostilidade aberta contra os invasores. O primeiro sinal de que as duas estavam se juntando veio 5 semanas depois das tsunamis. Um indonésio vestindo camisolão branco – roupa em geral associada aos islamitas mais conservadores do lugar – atacou a facadas um fuzileiro holandês num mercado em Serang, pequena cidade na ilha de Java.

Não conseguiram fazer qualquer conexão entre o ataque e religião. Mas hoje, em retrospectiva, dá para dizer que foi o primeiro sinal do que estava por vir. Na época, as autoridades coloniais até desconfiaram que ele pudesse estar ligado a uma seita fundamentalista. Duas décadas antes, os holandeses começaram a acompanhar com régua e compasso os contatos entre os muçulmanos da sua colônia e os países árabes. Foi um período em que acossada pelas expansões de países ocidentais por África, Ásia e Oriente Médio, a liderança islâmica na Península Arábica radicalizou o seu discurso e transformou em dever religioso a resistência aos infiéis.

A Holanda, que conhecia muito bem as injustiças inerentes ao seu sistema colonial, temia que os ouvidos de seus súditos fossem suscetíveis aos apelos de confronto. Até Krakatoa, aparentemente eles permaneceram surdos. Mas depois da explosão do vulcão e das tsunamis que ela provocou, a população de Java e Sumatra começou a prestar atenção no que diziam os pregadores muçulmanos. A catástrofe e o discurso religioso encaixaram-se perfeitamente. Winchester lembra que na Indonésia, país que tem 21 vulcões e se ergue sobre solo extremamente instável, catástrofes naturais, dada a sua frequência, sempre tiveram alguma dimensão mística.

A explosão do Krakatoa deu a essa tradição um grau de substância que há muito ela não tinha. Abdul Karim, um líder religioso local que desde 1870 havia se estabelecido em Bantam, pequena cidade na ilha de Java, parece ter entendido isso melhor do que ninguém. Imediatamente após a chegada da tsunami, ele passou a criticar as operações de resgate comandadas pelos holandeses. Mas logo subiu o tom do discurso. Dizia que a catástrofe era resultado do abandono de Maomé pelos homens e que era em situações dessas que os Mahdi – figuras messiânicas do islamismo – apareciam. Eles eram santos capazes de guiar outros homens para voltar aos caminhos de Deus.

Parte do que Karim afirmava serem os sinais da chegada do Mahdi – morte do gado, devastação e chuvas cor de sangue – quem entregou a ele não foi necessariamente o profeta, mas a natureza. Na esteira da explosão do Krakatoa, as tsunamis provocaram grandes inundações, mataram milhares de pessoas, o gado foi dizimado pela morrinha e durante meses a fio, graças às cinzas que pairavam nos céus sobre Java e Sumatra, a chuva quando caía tinha uma cor marrom. Vista pelo filtro da fé de um mulá, não era difícil deixar a água com cor de sangue e impossível para um devoto não acreditar que o dia do Juízo Final, pelo menos na Indonésia, estava muito próximo.

Ele chegou em 1888, na forma de uma rebelião organizada pelos seguidores de Karim que tinha todas as características do islamismo de fundo fanático com o qual o mundo convive hoje em dia. Os rebeldes foram selecionados pela sua capacidade de expressar a fé muçulmana e juraram por escrito que morreriam e matariam em nome dela. A rebelião, que ficou conhecida como a Revolta de Bantam, durou dias e não chegou a provocar número imenso de vítimas – 24 morreram do lado holandês, 30 entre os nativos – mas foi de uma crueldade impressionante.

Na sua esteira, o domínio da Holanda sobre a futura Indonésia foi totalmente reestruturado. Os impostos diminuíram, a população nativa ganhou liberdade de movimentos e os regimes de cultivo nas plantações foram um pouco mais humanizados. Em retrospectiva, lembra Winchester, hoje parece que a revolta levada a cabo pelos seguidores de Karim nada mais é que uma nota de pé de página no processo de independência da Indonésia, que aconteceu só em 1949. Mas o fato é que seu insucesso não importa. O importante é notar que depois da explosão do Krakatoa, uma vertente do Islã que parecia não ter futuro em Java e Sumatra, não apenas se consolidou, como passou a ser parte importante do processo político na região. As ilhas, hoje, abrigam um exército de 40 mil separatistas, que há muito lutam para cortá-las do resto da Indonésia.

Se as tsunamis de dezembro vão ajudá-los nessa empreitada, só o tempo dirá. Mas as condições lhes são favoráveis. Como há mais de 100 anos, o Islã voltou a se sentir ameaçado pelo imperialismo ocidental e muitos de seus devotos lidam com os infiéis como se de fato vivessem em uma guerra santa. A catástrofe lhes deu o meio de tornar real o seu discurso sobre os perigos da falta de deus entre os homens. Só faltam as operações de resgate – onde pontificam europeus, americanos e japoneses – repetirem os erros dos holandeses e cuidar somente das áreas onde estão seus interesses.

Quem quiser ter a real dimensão do desastre que se abateu sobre a Indonésia e pelo menos arranha o inglês, precisa ler reportagem do Guardian sobre a situação na parte Oeste das ilhas de Java e Sumatra. Comparado ao que acontece por lá, a devastação em outros países atingidos pelas ondas fica pequena. Para quem quiser saber sobre o verdadeiro impacto de catástrofes naturais ao longo da História da humanidade, o The New York Times publicou um ótimo texto sobre o assunto (cadastro gratuito). Nele aprende-se, por exemplo, que o terremoto que sacudiu a Cidade do México em 1989 ajudou a derrubar o domínio de 71 anos do PRI sobre a política do país.

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