Reportagens

Um Brasil para usar nas férias

As serras do sul não servem só para fingir que se viaja pela Europa. Servem também para entrar em contato com um país que os brasileiros não conhecem mais.

Marcos Sá Corrêa ·
29 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

Graças ao guia da editora Bei, que encomendou o texto, esta coluna tem um roteiro de verão para recomendar aos interessados em fazer as pazes com a paisagem brasileira. Esqueça a linha reta. Da praia à serra, o caminho mais curto entre os dois pontos não poderia ser mais cheio de curvas, pelo menos no trecho da costa brasileira onde o planalto dos Campos Gerais cai sobre a planície litorânea como uma cortina de pedra, rasgada por imensos cânions e cerzida por estradas que, séculos antes do teodolito, foram traçadas no precipício a casco de mula. Pelo caminho dos tropeiros, numa arrancada de cento e poucos quilômetros, é possível juntar agora no mesmo dia de verão a manhã do banho de mar à noite da lareira acesa, o peixe do almoço à polenta do jantar, a moda volúvel do balneário ao tenaz figurino do peão que ainda usa bombacha, chapéu e lenço no pescoço para trabalhar, como se estivesse pronto para fazer o papel de gaúcho na televisão.

São mil e tantos metros de altitude e pelo menos três estradas para subir a Serra do Mar num estilo que no resto do Brasil vai ficando cada vez mais raro. Pouco importa se em Santa Catarina o turista escolhe a estrada do Rio do Rastro, que pela lisura do piso e a iluminação noturna parece uma rodovia alpina, preferiu a variante do Corvo Branco, que é ainda mais cenográfica e oferece nos trechos de terra um convite implícito à bravura dos carros de aluguel, ou embicou no Rio Grande do Sul pelo caminho do Faxinal, que nas estação das chuvas se transforma numa pista de provas para veículos com tração nas quatro rodas.

Em todas essas estradas, ele passará por um curso rápido de afabilidade ao volante e um vestibular para os padrões de etiqueta que o esperam lá em cima. Ali, quando um caminhão entala numa curva mais fechada, os outros carros recuam para lhe facilitar a manobra e a vida. As ultrapassagens são negociadas com rapapés quase diplomáticos. E todo acostamento mais amplo é um aceno tácito para estacionar num mirante onde geralmente os sentidos misturam o som de uma cachoeira próxima com a visão do mar distante.

Não precisava mais nada, mas é só o começo. O planalto, nessa região, arquivou na borda de seus cânions a paisagem que, no século XIX, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire classificou como amostra do paraíso terrestre. O que ele tinha diante dos olhos na ocasião era a floresta de araucária, um tipo tão nobre de mata nativa que vem coroada por uma relíquia vegetal de 250 milhões de anos. A araucária vive atualmente cercada de campos floridos e de malentendidos. Nascida no tempo em que os dinossauros ainda caminhavam pelo planeta, resistiu a mudanças climáticas e convulsões geológicas, para quase acabar nos dentes das serrarias, que da noite para o dia transformaram os estados sulinos em vorazes consumidores de madeira no século XX.

Ela quase não resistiu à febre das madeireiras. Tornou-se rara. Mudou de companhia. Deixou de formar densas florestas para se isolar em beiras de cerca e fundos de pasto. Compõe tão bem o cenário rural do planalto que dá a impressão de ter sido sempre assim. É uma árvore genuinamente nacional mas, como se dá bem com o frio e não pode faltar nos cartões-postais que promovem os invernos nevados, acaba passando por uma prova de que todo aquele território é um filé da Europa enxertado no dorso da serra gaúcha.

Os turistas que vão para lá atrás dessa conversa não sabem o que as agências de viagem estão escondendo. Nada contra o Natal-Luz de Gramado, a Frühlingfest de Nova Petrópolis, o Mangiare di Polenta de Flores da Cunha, a Krönenthalfest de Vale Real, os morangos de Bom Princípio, as adegas do Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves, o Ritorno alle Origine de Urussanga, as missas dominicais rezadas em alemão – semana sim, outra não – de São Vendelino e tudo o que a colonização alemã, italiana, austríaca, polonesa e ucraniana trouxeram para criar à sua volta, com muito suor e rega-bofe, um dos melhores destinos turísticos do país. Mas não custa lembrar que a região também é um lugar muito recomendável para quem precisa matar as saudades do Brasil.

É um Brasil que nem sempre se encontra fora dali. Um Brasil arrumado, cordial e típico, o tal “país eminentemente agrícola” que ainda freqüentava os compêndios escolares não faz tanto tempo assim. Nele municípios inteiros praticamente se confundemm com parques nacionais e os pastos naturais, pisados pelo gado desde o século XVI, ainda florescem. Conserva nomes rústicos como atestados de origem controlada. Em São José dos Ausentes, a maior atração turística se chama Cachoeirão dos Rodrigues. Nesses recantos, o mapa rodoviário pode ficar esquecido no porta-luvas, porque se perder é o melhor caminho para chegar, por estradas vicinais que não têm placa nem nome, a vales laboriosamente cultivados, morros forrados de florestas, rodas d’água, rios limpos, gado cercado, galinhas soltas e casas de janelas escancaradas. Errar não tem a menor importância. Os lugares quase sempre se parecem. E isso quer dizer muita coisa numa época em que o menor desvio de rota, em outros estados do Brasil, leva a econtros acidentais com voçorocas ou favelas.

Há menos hotéis desse lado da serra do que pousadas, geralmente funcionando em fazendas. Algumas são históricas. Todas são produtivas. Costumam ser decoradas com velhos móveis da família e entoopem os terreiros com ferramentas agrícolas que qualquer decorador mandaria pendurar na sala. Os travesseiros recendem a roupa quarada. Dormindo na casa principal, o hóspede tende a acordar junto com o dia, tirado da cama pelo cheiro do pão que assa na cozinha. O bom-dia do anfitrião vem com a cuia de chimarrão na mão estendida. Na mesa coletiva, que em geral se aninha perto do fogo, os pratos são feitos com receitas imutáveis e produtos caseiros, mas têm o tempêro da fumaça que saiu do fogão de lenha e um gosto que mexe ao mesmo tempo com o paladar e a memória. A comida não poderia ser mais brasileira. Tão brasileira que cabe exatamente na definição universal que o milanês Gianni Brera deu à culinária tradicional dos montanheses no norte da Itália: “Coisas pobres, preparadas com uma civilidade que se aproxima do refinamento”. Parece simples, mas tente encontrá-la assim, sem mais nem menos, zanzando por outros pedaços do Brasil.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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