Ilhéus – Uma audiência pública de cerca de 10 horas, um pedido do Ministério Público Federal contra o empreendimento negado pela justiça local e manifestações calorosas da sociedade civil contra e a favor da intervenção. Assim começam a ser fincadas as bases de mais uma obra de infra-estrutura no litoral brasileiro com importância questionável e grande potencial de destruir o pouco que resta de Mata Atlântica no país. O Complexo Intermodal Porto Sul, uma parceria público-privada que começou a ter suas formas delineadas em 2007, está cada vez mais perto de sair do papel, envolvido por muita polêmica.
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O Complexo compreende três grandes obras. A primeira delas é uma ferrovia de quase 1,5 mil quilômetros, planejada para ligar Figueirópolis, no sul do estado de Tocantins, à cidade de Ilhéus, no litoral sul baiano. A obra está inserida no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e deve custar cerca de R$ 6 bilhões. A linha férrea vai passar pela cidade de Caetité, no centro-sul da Bahia, onde existe uma mina de ferro explorada pela multinacional Bahia Mineração (Bamin). É ela a responsável pela construção de um terminal de cargas e um porto na cidade de Ilhéus, orçado em cerca de R$ 800 milhões.
A justificativa do governo e setor privado para a construção do complexo está na necessidade, segundo eles, de levar o desenvolvimento para esta região da Bahia, que viu sua economia decair após a crise do cacau, em meados do século XX, e nunca mais se reerguer nos patamares que as monoculturas cacaueiras um dia propiciaram.
Pressões sobre a natureza
A região destinada para a construção do terminal de cargas fica em uma área de 1.780 hectares de Mata Atlântica. Destes, cerca de 500 hectares são somente para a Bamin. A área está totalmente inserida na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica reconhecida pela Unesco, é protegida por lei federal e pelo Plano Diretor da Cidade. Além disso, por estar às margens do Rio Almada e vizinho à Lagoa Encantada, o trecho foi considerado, em 1991, Área de Proteção Ambiental.
Um valioso ecossistema de remanescentes de floresta atlântica, mangues e áreas úmidas que, para viabilizar a construção da obra foi considerada de utilidade pública pelo governo estadual no início deste ano. “[A obra] é um desrespeito ao próprio ordenamento jurídico do país”, diz Clayton Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
A linha férrea que sai de Tocantins, em seu trecho final também vai passar pela APA da Lagoa Encantada até desembocar na região da Ponta da Tulha, 20 quilômetros ao norte da cidade. O medo dos cerca de dois mil moradores da Lagoa que vivem do turismo e da pesca na região é que o minério transportado contamine solo e água. A licença ambiental do projeto não conta com a anuência destes moradores, o que está determinado em lei. Mesmo assim, o presidente Lula e o governador da Bahia, Jaques Wagner, lançaram o edital de licitação da obra no dia 26 de março com toda pompa e circunstância.
A área do terminal de cargas e do traçado da ferrovia tem importância biológica estratégica para a região. Segundo o próprio Relatório de Impacto Ambiental da Bamin, lá vivem espécies endêmicas e ameaçadas, como o mutum-do-sudeste, a preguiça-de-coleira e macaco-prego-de-peito-amarelo. São 348 espécies de aves catalogadas, sendo que 34 delas correm risco de extinção, 148 espécies de mamíferos, sendo 29 ameaçados, 87 espécies de anfíbios e 48 de repteis.
Além das espécies de fauna, também se destacam importantes exemplares de flora, como o palmito-juçara, cedro, taipoca e ingá-açu. Sabe-se que a Mata Atlântica pode abrigar até 400 espécies de plantas diferentes em apenas um hectare. Atualmente, o estado da Bahia possui apenas 8,8% da floresta que um dia já existiu por ali, segundo dados da não-governamental SOS Mata Atlântica. A maior porção está justamente no litoral sul, onde Ilhéus se encontra.
Mitigação garantida?
Segundo Clovis Torres, presidente da Bamin, todos estes impactos serão minimizados com ações de “mitigação”. A área do retroporto destinada à empresa que não for usada para as instalações será transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural. Também serão implantados programas específicos de manejo dos animais, com realocação primeiramente em centros de criação em cativeiro para posterior soltura. “Também vamos fazer um trabalho que hoje não está sendo feito de manejo das áreas desflorestadas. Vamos promover o replantio nelas”, disse a O Eco.
Para ambientalistas, moradores locais e empresários, respaldados pelo Ministério Público Estadual, tais ações não vão compensar a enorme perda de biodiversidade. Por todas as questões legais e de riqueza natural, eles pedem a suspensão do licenciamento.
Além das pressões no continente, pesquisadores alertam para os impactos que serão sentidos debaixo d´água. Para transportar o minério de ferro do terminal até os navios, a Bamin espera construir uma ponte de cerca de 2,5 quilômetros. Na área de atracação dos navios, a empresa deverá fazer dragagem de cerca de 3 metros, até chegar a 21m, a profundidade necessária para o calado dos navios que vão atracar por lá. Também deve ser construído um quebra-mar de 1 km de extensão, com 24 metros de altura, dos quais dois ou três ficarão acima do nível do mar.
Tal interferência vai certamente causar muito distúrbio na vida marinha local, diz Leandra Gonçalves, bióloga e coordenadora da Campanha de Oceanos do Greenpeace. Segundo o RIMA da Bamin, na área de influência do empreendimento foram encontradas 312 espécies de peixes, 29 deles considerados ameaçados. A região também é rota migratória de baleias-jubarte e local de desova de tartarugas marinhas. Além disso, estudo recente da Universidade Estadual de Santa Cruz identificou um grande recife de corais, com 11 espécies diferentes, bem no local em que será construída a ponte para escoamento do minério.
Segundo o presidente da Bamin, o uso de tecnologia avançada fará com que os impactos sejam mínimos. “Temos um projeto de ponta, não vai atrapalhar o movimento das marés e peixes”, disse. Torres também garantiu que a correia transportadora do minério será fechada, o que impede a dispersão dos grãos de ferro. De acordo com ele, as pilastras da ponte podem servir como novas fazendas de vida marinha, inclusive.
Para ambientalistas, no entanto, não é bem isso que vai acontecer. Leandra Gonçalves lembra que o movimento das embarcações causa dispersão do leito marinho, o que aumenta a turbidez da água e impede a entrada de luz, interferindo nos processos biológicos dos animais. Também há o risco de vazamentos de combustível e de despejo irregular de esgoto e lixo nas águas próximas ao porto.
Organizações não-governamentais, lideradas pela Rede Sul da Bahia, também lembram que o quebra mar, nas dimensões que será construído, pode causar assoreamento de algumas áreas e fazer com outras sejam engolidas pelo mar, devido à mudança do movimento da maré. Caso semelhante já ocorreu na Barra de São Miguel por causa do Porto de Malhado, em llhéus. Além disso, o minério estocado à beira mar pode provocar a criação de nuvens de grãos de ferro, causador da maré vermelha, que mata peixes e é perigoso para humanos.
A Bamin garante a implementação de projetos de “mitigação”, como monitoramento das águas, e diz que tecnologia usada não possibilitará contaminações. Para Leandra Gonçalves a empresa erra até no conceito do que é mitigar um impacto. “Os projetos sugeridos são de adaptação. Mitigação seria parar as operações do porto entre junho e novembro, época de reprodução das jubarte, por exemplo. Agora ele vai querer colocar a baleia em cativeiro?”, pergunta-se.
A audiência pública do empreendimento foi realizada no dia 25 de março. Agora cabe ao Ibama liberar (ou não) a realização da obra.
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