“Isso aqui tudo tinha árvore. Muita mesmo. Naquela parte ali tinha um igarapé com água limpa, onde as pessoas tomavam banho, lavavam roupa”. De um dos pontos mais altos do bairro Nossa Senhora de Fátima, na Zona Leste de Manaus (AM), Ribamar Oliveira, 47 anos, vai indicando com a mão as áreas que um dia foram verdes.
Hoje, no lugar da mata, cerca de cinco mil famílias ocupam o local. Por ali é normal faltar luz e água. A coleta de esgoto não existe. E apenas 10% dos moradores têm o título da terra. Apesar de sua infraestrutura precária, Nossa Senhora de Fátima pode se gabar de estar entre os 56 bairros regularizados da cidade.
Natural do Maranhão, Ribamar viu de perto a floresta se transformar em ocupação. Há quase três décadas na capital do Amazonas, para onde foi atraído pelas promessas de emprego na Zona Franca, ele estava entre as pessoas que abriram caminho para erguer as novas casas. “O pessoal pegava o machado e começava a capinar, tirar árvore. Limpamos o terreno para depois iniciar as construções. Muitas madeiras foram usadas do próprio terreno”, recorda .
foto: Bernardo Camara O bairro N.S de Fatima, na Z.Leste: “Isso aqui tudo tinha árvore“ |
Depois de anos pulando de casa em casa, sempre de favor, ele soube da invasão que seria iniciada na Zona Leste e não titubeou: “A pessoa quando entra numa terra não vem com a preocupação de estar entrando numa área de preservação. Vem com a preocupação de pegar um pedaço de terra, ocupar e morar. Por necessidade, o sujeito tem que ficar”.
A história de Ribamar ganha eco em muitos cantos de Manaus. Do total de bairros que a prefeitura já carimbou como legítimos, 80% provêm de invasões. E a maioria delas também começou com machados em punho.
Foi no fim da década de 1960 que o governo militar resolveu tirar do papel a Zona Franca, com o objetivo de integrar a Amazônia à economia nacional. De lá para cá, mais de 30 mil hectares de floresta foram ao chão dentro dos 44 mil hectares de área urbana.
“A Zona Franca foi uma ação do governo muito importante para nossa região, pois nos possibilitou crescimento. Mas Manaus não estava preparada para receber essa grande demanda populacional. Não havia disponibilidade de habitação”, sublinha o presidente do Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), Claudemir Andrade. “Isso fez com que a cidade fosse ocupada de forma desordenada, sem qualquer tipo de planejamento”.
No início dos anos 70, a população manauara não ultrapassava os 400 mil habitantes. Em apenas quatro décadas, o número deu um salto vertiginoso e já se estima que 1,8 milhão de pessoas vivam na capital do Amazonas.
Crescimento pé na lama
Em parte, as aspirações militares da época do presidente Castelo Branco foram atingidas: Manaus tem hoje um dos mais altos PIBs absolutos do Brasil. Mas os problemas continuam chegando na esteira do desenvolvimento. Enquanto a média nacional de crescimento populacional está em 2,3%, a maior região metropolitana do Norte beira os 4%. Segundo o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Amazonas (CREA-AM), 67% dos habitantes não têm moradia adequada.
foto: Bernardo Camara Mesmo regularizados, bairros não têm condição de moradia |
“Como resultado nós temos isso: uma região bastante rica economicamente, mas cheia de problemas urbanos. Hoje ainda corremos atrás do prejuízo. Se deixarmos que a cidade continue produzindo agenda negativa, esse débito nunca será resolvido”, prevê o chefe do Implurb.
O geógrafo carioca Paulo Renato Porto passou quatro meses do último semestre em Manaus. Foi pesquisar como a expansão demográfica tem pressionado os fragmentos de mata que ainda estão de pé. Chegando lá, impressionou-se ao constatar que, mesmo encravada no meio da floresta amazônica, a cidade é predominantemente cinza.
“Me surpreendi com o grau de improviso que é aquilo tudo”, diz, referindo-se às moradias erguidas sobre o leito de igarapés e em áreas verdes. “Foram vários os agravos ambientais e sociais com a população invadindo e derrubando floresta para construir casas. E tudo isso por falta de planejamento”.
Após levantar dados em livros, jornais e entrevistas, Paulo Renato concluiu que a dinâmica das invasões vai muito além das aparências. Responsável por inibir a urbanização desregrada, o poder público constantemente chega após a ocupação estar consumada. Na opinião do geógrafo, com razões claras. “Há uma relação de interesse. O político incentiva, apadrinha a ocupação desordenada, promete formalizar aquilo e assim consegue curral eleitoral grande”, observa.
Ribamar já cansou de assistir de sua janela candidato metendo o pé na lama em época de eleição. “Aqui no bairro mesmo a gente vê que o estado tem interesse político na ocupação. No período da campanha eleitoral, entram as máquinas para fazer abertura de rua, jogam camada fina de asfalto e está feita a urbanização”, conta.
“Chega um momento em que o poder público tem que fazer algum tipo de intervenção”, justifica Sybil Ferreira, coordenadora de regularização fundiária da secretaria municipal de Obras, Serviços Básicos e Habitação (Semosbh). “É aí que entramos com a urbanização. É uma demanda natural dessas áreas. As pessoas vão se arranjando da forma delas e uma hora temos que organizar aquilo”, explica.
Caminhos tortuosos
foto: Bernardo Camara Enquanto ocupações irregulares se alastram pela Zonas Norte e Leste, a especulação avança sobre as matas na Zona Oeste de Manaus. |
Enquanto a Semosbh dá as canetadas que legitimam ocupações irregulares, perto dali, no prédio da secretaria municipal de Meio Ambiente (SEMA), Myrian Cunha se desdobra em ações que tentam frear o avanço de casas sobre as matas. É ela quem coordena o setor de gestão territorial e ambiental da pasta. E admite que o cabo de guerra começa nos corredores oficiais. “Se houvesse uma política de habitação mais eficiente, talvez a perda de vegetação tivesse sido contida”.
Ela reclama da inversão de papéis a que o executivo municipal se acostumou: quando estoura a notícia de uma nova invasão, os servidores do Instituto de Planejamento Urbano e da secretaria de Habitação não levantam da cadeira. Quem tem de peitar a população é o pessoal do Meio Ambiente. “Por que acontecem as invasões? Porque eles [Implurb e Semosbh] não agiram antes. Não têm uma política de habitação, não constroem casas populares. Então eles deixam na nossa mão”.
Myrian também critica a completa ausência de diálogo entre estado e município, por diferenças políticas. Segundo ela, os projetos de desenvolvimento realizados pelo governo também têm gerado enormes prejuízos ambientais: “As ocupações não são as únicas ameaças aos fragmentos. O próprio governo colabora para isso, pois faz as obras sem se preocupar com nada”.
Em inúmeros casos onde constatou impactos evitáveis, a SEMA tentou parar as máquinas, mas o estado ignorou solenemente os embargos municipais. “O estado se acha autônomo, acha que não precisa ter nossa licença”, desabafa. “A gente sabe que é para o progresso da cidade. Mas que seja feito com mais cuidado. Eles chegam, botam as máquinas e quando você vai ver já tem denúncia de que é macaco vindo para cá, tatu para lá, jacaré, tudo”.
Além dessas ameaças, o setor imobiliário formal também tem cota de participação na derrubada da floresta. Enquanto as invasões se espalham pelos últimos pedaços de terra nas zonas Norte e Leste da cidade, na região Oeste condomínios luxuosos pipocam na paisagem, sob o aval da lei. “Eles vão desmatar onde estão autorizados. O problema é que o plano diretor é muito pouco restritivo. Quando foi feito, não se imaginou que a expansão urbana chegaria tão rápido nessa área”, lamenta Myrian.
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