Vida de onça não é fácil no Brasil. Mesmo que o país represente hoje metade da área onde ocorre o maior predador tropical das Américas. Conforme especialistas, parques nacionais e outras áreas protegidas têm papel forte na sua conservação, principalmente na Amazônia e Pantanal. No restante do país, fragmentação e destruição de matas põem em cheque sua sobrevivência. Tudo temperado pelo clima futuro.
Mestre em Biologia e doutoranda pela Universidade Federal de Goiás sobre efeitos das mudanças climáticas na distribuição da onça-pintada (Panthera onça), Natália Tôrres Mundim vem atualizando as ocorrências da espécie no país para apontar os melhores locais para a manutenção do grande gato.
Membro do Instituto Onça-Pintada (IOP) desde 2002, ela já varou muito mato no rastro do felino e conta que as projeções de computador marcarão no mapa nacional onde devem ser consolidadas ou criadas novas áreas protegidas. O banco de dados do instituto registra 850 ocorrências de onças na última década (mapa acima), montado com imagens de armadilhas fotográficas, entrevistas com caçadores e pesquisadores.
Seu estudo cruza justamente esses dados com modelos teóricos de distribuição da espécie e com variáveis ambientais, apontando onde a onça poderá ocorrer com uma possível elevação da temperatura. “Assim sabemos onde a espécie tem potencial para se manter no futuro e poderemos procurar áreas favoráveis à sobrevivência da espécie, mesmo onde ainda não há registros. O que importa é o conjunto de fatores que facilitem sua manutenção”, explicou.
Natália espera concluir sua investigação até o fim do ano, mas os dados que já levantou não são animadores. Conforme a pesquisadora, as áreas mais propícias à ocorrência de onças e que podem mais sofrer com o aumento da temperatura são hoje as mais afetadas por desmatamentos e queimadas. Elas se concentram no chamado Arco do Desmatamento, nos estados do Mato Grosso, Rondônia e Pará, majoritariamente em áreas de transição entre o Cerrado e a Amazônia, onde avança a fronteira agropecuária.
“Se não fizermos nada agora (para conter a destruição), as condições futuras serão ainda piores para a espécie”, ressaltou a bióloga.
Espécie guarda-chuva
Projetar o amanhã do felino não é mera curiosidade científica. Precisando sempre de grandes áreas em boas condições ambientais, a garantia de sobrevivência da onça é seguramente uma boa estratégia para a conservação de várias outras espécies.
A onça-pintada ocorre atualmente do centro e sudeste da Argentina até o norte da América Central. Há registros até no sul dos Estados Unidos. Em todas essas regiões, ela sempre usa grandes áreas para caçar e se reproduzir. No Cerrado, no mínimo 40 quilômetros quadrados são necessários. Já no Pantanal, pela maior oferta de comida, metade da área é suficiente, diz Leandro Silveira, presidente do IOP.
“Nenhuma outra espécie precisa de tanta área. Se garantirmos que ela esteja bem, todos abaixo da onça e que precisam de áreas menores estarão bem. Ela é uma espécie guarda-chuva, como a maioria dos predadores no topo de cadeia alimentar”, explicou.
Onde e como sobreviver
Conforme o mapa de ocorrências do Instituto Onça-Pintada, as áreas mais importantes para manutenção do predador em longo prazo são a Amazônia e o Pantanal, pela baixa fragmentação de florestas e outros ambientes nativos, e também porções do Cerrado, como as matas que cobrem as bordas (veja aqui) dos mais de 2,6 mil quilômetros do Rio Araguaia, do desaguar no Rio Tocantins às nascentes ameaçadas por voçorocas entre Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
“A boa situação na Amazônia e Pantanal reduz o nível de ameaça nacional da espécie, mas sua situação é crítica em outras regiões”, comentou Rogério Cunha de Paula, diretor em exercício do Centro Nacional de Pesquisa de Predadores do Instituto Chico Mendes (Cenap/ICMBio).
O Parque Nacional das Emas (GO) é outro ponto preocupante para o felino, pela grande densidade de fazendas e desmatamento em seu entorno. A esfarrapada Mata Atlântica também oferece hoje poucas áreas propícias às onças, enquanto a Caatinga tem bolsões valiosos, como nos parques nacionais da Serra das Capivaras e da Serra das Confusões, no sul do Piauí, onde curiosamente um terço das onças é preta.
Segundo Silveira, do IOP, também foram registradas onças em locais inesperados, como em porções extremamente secas da Caatinga ou densamente povoadas de Rondônia, inclusive onde os lagos das usinas de Santo Antônio e Jirau cobriram a floresta com um mar de água doce. “Ficamos surpresos e otimistas, mas a adaptação da espécie a situações adversas como essas precisa de tempo, coisa que o desmatamento não permite”, disse.
Um estudo apresentado no ano passado por pesquisadores do Instituto Onça-Pintada pesou a importância de unidades de conservação e de terras indígenas para a manutenção do majestoso e arredio felino. A avaliação mostrou que há grande risco de extinções locais da espécie fora da Amazônia e do Pantanal. Ou seja, a destruição de florestas em todo o restante do Brasil pode acabar com as onças fora dos grandes bolsões verdes.
Essa situação, conforme o presidente do instituto, torna ainda mais clara a importância de matas protegidas em lei como margens de lagos e rios e nascentes, as chamadas “áreas de preservação permanente”, bem como as “reservas legais” de propriedades rurais, que variam de 80% das fazendas na Amazônia a 20% na Mata Atlântica. Unir esses pedaços de matas com corredores também é indispensável para a sobre vivência da onça.
“Se todos tivessem ao menos 20% de suas áreas preservadas, teríamos o país mais rico em fauna do mundo, mas a teoria é uma e a prática é outra”, ressaltou Silveira.
Rogério Cunha de Paula, do Cenap, reconhece o tamanho do desafio de se conservar onças em ambientes com alto nível de degradação ambiental. “Unidades de conservação fora da Amazônia e Pantanal são pequenas e desconectadas”, disse. Ao mesmo tempo, ele aponta algumas ações oficiais e vê um futuro promissor para o grande felino. Conforme o especialista, o governo formou uma “aliança” com instituições públicas e privadas para avaliar populações do predador nas regiões mais degradadas do país e compor ao menos seis grandes corredores no país (veja aqui), auxiliando na manutenção da espécie.
Essas grandes “avenidas” devem somar mais de 20 milhões de hectares em regiões com grande importância ecológica na Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado. Outras, por enquanto estão de fora, como porções do Cerrado central. E boa parte dos corredores dependerá de florestas em propriedades privadas, conservadas ou precisando de recuperação. “Não podemos negar a existência de áreas não-protegidas oficialmente, até porque eles são maioria no país”, comentou de Paula.
O maior dos corredores abrigará porções da Bahia e do Piauí, e depende da boa vontade da Casa Civil para liberar a criação do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, um gigante com 860 mil hectares.
A estratégia nacional tem grande porte e está associada à preservação da onça em toda sua região de ocorrência. Uma das entidades que encabeça a empreitada é a não-governamental norte-americana Panthera, que elaborou um mapa com as principais zonas de onças no continente e projetou a formação de corredores de ligação entre todas elas. Confira aqui.
Ameaças em cada contexto
A experiência de especialistas em onças mostra que preservar o felino depende das características ecológicas, de uso da terra e das culturas de cada região.
Os maiores motivadores da morte de onças ainda são conflitos com fazendeiros e a busca por troféus típicos das Américas tropicais, grande parte por caçadores estrangeiros. “Muita gente sabe (da caça ilegal), mas nunca se pega ninguém”, comentou Silveira, presidente do IOP.
Segundo o biólogo, o domínio da pecuária extensiva e o desmatamento ainda não incidindo com força no Pantanal faz com que a relação entre fazendeiros e onças seja mais tranqüila. Já no entorno do Parque Nacional das Emas, no sul de Goiás, por exemplo, o tratamento dispensado ao predador pelas centenas de produtores é bem menos amistoso. “Isso influencia nas estratégias de conservação. Falar de conservação em grandes áreas ou em regiões menos ocupadas, onde poucos proprietários têm grande quantidade de terras, é mais fácil. Você mexe com muito menos gente e conserva muito mais”, disse.
Isso foi comprovado na prática entre 2004 e 2006, quando o instituto levou ao Pantanal um programa de compensação por gado abatido por onças a 13 fazendas, somando 354 mil hectares. Cada boi abatido por onça era compensado com 150 dólares. No episódio, foi comprovado que as cabeças devoradas pelo felino não eram tantas quanto as relatadas pelos produtores. O resultado foi um gasto de dinheiro bem menor que o projetado para compensar as perdas.
“Gastamos 20% do recurso esperado. A medida é viável, pois a onça não mata tanto eles falam. Tudo que morria caía na conta da onça, pois é mais bonito dizer isso que afirmar que a vaca morreu atolada no barro ou afogada no rio”, disse Silveira.
O pesquisador também aposta que esse tipo de compensação é mais barato e mais efetivo para a conservação da espécie do que desapropriar fazendas para criar parques nacionais. “Fauna e vegetação são mantidas e caçadores são afastados pelos proprietários. É muito melhor ter uma propriedade privada bem manejada do que um parque nacional às moscas”, ressaltou.
Para Rogério de Paula, do Cenap, o ponto mais positivo da experiência foi mostrar que as onças são responsáveis por uma parte pequena das perdas dos pecuaristas. E segundo ele, melhor do que pagar pela conservação é trabalhar pelo convencimento das populações que convivem com o predador, mostrando a importância da espécie e oportunidades com a sua manutenção, dentro e fora de áreas protegidas pelo governo. “Até porque o dinheiro dos pagamentos não dura para sempre”.
Atalhos:
Instituto Onça-Pintada
Panthera
Cat News / Nº4, 2008
Saiba mais:
Somem catetos e queixadas, onças também
Alimentando as feras no Pantanal
O lanchinho do grande felino
Terra rasgada
A majestosa onça-pintada do Pantanal
Onças-pintadas: estrangeiros ilegais
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