Reportagens

Na pressão por mais agrotóxicos

Órgãos de saúde pública tentam reduzir toxicidade de produtos usados no país, enquanto parlamentares criticam sua conduta e pressionam com ações no Congresso Nacional.

Aldem Bourscheit ·
25 de junho de 2009 · 15 anos atrás
Avião despeja venenos sobre lavoura. (Foto: ipm.iastate.edu)
Avião despeja venenos sobre lavoura. (Foto: ipm.iastate.edu)

No primeiro semestre de 2008, setores do ramo de agrotóxicos deflagraram ações judiciais em série contra a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Eles tentavam impedir a reavaliação de quatorze substâncias usadas em quase uma centena de produtos. Como perderam todas as disputas, projetos de lei, requerimentos de informações e “Propostas de Fiscalização e Controle”, espécies de mini-CPIs, são agora direcionadas contra as reavaliações, dizem fontes da Anvisa.

Essas ações tramitam em comissões como de Agricultura, Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e da Crise Econômico-Financeira da Agricultura, na Câmara, protocoladas por deputados como Ronaldo Caiado (DEM/GO), Abelardo Lupion (DEM/PR), Luciano Pizzato (DEM/PR) e Moacir Micheletto (PMDB/PR), além da senadora Kátia Abreu (DEM/TO).

Tais medidas levam pressão política e burocrática aos órgãos reguladores, enquanto propõem, por exemplo, que o registro de produtos equivalentes ou genéricos de agrotóxicos seja atribuição exclusiva do Ministério da Agricultura, driblando as áreas de saúde e de meio ambiente, além de ampliar e facilitar a entrada de venenos agrícolas no país.

Diretor da área de agrotóxicos da Anvisa, José Agenor da Silva avalia que qualquer parlamentar ou cidadão tem direito a conhecer como é feito o trabalho da agência, mas admite que algo mudou desde o início das reavaliações. “Depois que começamos as reavaliações, há uma tentativa de se retirar legitimidade política e técnica da Anvisa. Isso existe, por parte de alguns segmentos que exercem pressão no parlamento e pelo tipo de solicitações encaminhadas por alguns parlamentares”, comentou.

Conforme Anvisa e Fundação Oswaldo Cruz, órgãos ligados ao Ministério da Saúde, as reavaliações levam ao uso de substâncias menos agressivas nas lavouras e devem ocorrer frente a novos estudos, alertas internacionais ou relatos de intoxicações. Elas podem restringir ou proibir certas substâncias e trazem mais segurança para quem aplica esses químicos. Essas medidas tem base em um decreto de 2002, que regulamentou a lei de agrotóxicos, e também em resoluções da Anvisa.

“As reavaliações não são feitas para perturbar os produtores. São baseadas em evidências científicas e visam manter a saúde dos produtores e da população”, disse a diretora do Sinitox – Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, Rosany Bochner.

A articulação pró-agrotóxicos levou o deputado Edson Duarte (PV/BA) a questionar a conduta dos ruralistas no parlamento. Segundo ele, se as reavaliações reduzem o risco para agricultores e consumidores, “todos deveriam estar aplaudindo, principalmente os produtores e seus representantes no Congresso”. Mas o que se vê é exatamente o contrário. “É extremamente lamentável que se use do poder político para impedir que órgãos públicos façam aquilo que é a sua obrigação, que é zelar pelo interesse coletivo”, disse.

Comentando a O Eco que as medidas encaminhadas no Congresso pretendem esclarecer a atuação da Anvisa, o deputado Luciano Pizzatto afirmou ser favorável às reavaliações, “para dar mais segurança à sociedade em geral”, mas disse que os critérios para escolha dos produtos a serem reavaliados não são claros. “Já pedi e recebi informações da Anvisa, mas não me senti confortável com o que vi. Tenho notado discrepâncias entre relatórios de entidades independentes de pesquisa e da agência sobre substâncias usadas em defensivos. Isso gera uma insegurança muito grande”, disse.

Entre os questionamentos levantados pelo parlamentar, sem citar nomes ou números, estão longos prazos para aprovação de processos para liberação de agrotóxicos e tratamento diferenciado para esta ou aquela empresa no registro de substâncias ou de agrotóxicos.

“Algumas empresas têm processo mais duro do que outras. Há processos parados há quatro ou cinco anos, outros demoram mais de um ano para sair do protocolo e chegar à área técnica da agência. Há procedimentos liberados pelo meio ambiente e agricultura e ainda sem parecer da Anvisa. E há as reavaliações, em cima de justificativas meritórias, mas quero achar consistência nesses processos. Se tiver consistência técnica, não há o que se discutir”, ressaltou.

Pizzato informou que está organizando uma reunião técnica na primeira quinzena de julho para promover um debate com governo, setor produtivo e comunidade científica quanto às reavaliações.

Para o pesquisador em agricultura do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada João Carlos de Souza Carvalho, o sistema para registro de agrotóxicos complicou-se a partir do ano 2000 pela atuação de técnicos dentro da Anvisa contrários ao uso de agroquímicos na agricultura. Ele também comentou a O Eco que batalhas judiciais são comuns no setor e que não há tentativa para se flexibilizar a legislação nacional de agrotóxicos. “A verdade é que o mercado está dominado por multinacionais, em detrimento de produtos nacionais ou genéricos. Estão sentados em cima de processos para liberação de substâncias de empresas nacionais”, disse.

Silva, da Anvisa, negou o beneficiamento de esta ou daquela empresa pela agência e comentou que atrasos na tramitação de processos são comuns pela complexidade do tema e pela falta de pessoal nos órgãos de governo. “Repilo essa declaração (do beneficiamento de empresas) com veemência porque ela não é verdade. Existem atrasos naturais para avaliação de processos, tanto aqui quanto nos ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura. Alguns registros dependem de avaliação técnica conjunta. Desacertos internos serão resolvidos com um sistema de informações simultâneas que está sendo desenhado e que será gerenciado pela Casa Civil”, disse.

Na agência, há 149 processos em análise e outros 449 aguardando na fila para ganhar espaço em seus escaninhos.

Mercado e pressão em alta

Consumo de Agrotóxicos x Lavouras em 2008
Agrotóxicos (ton) Área plantada (ha) Agrotóxicos (Quilos / ha)
Soja 318.818 21.224.665 15
Milho 98.910 14.445.264 6,8
Cana 50.344 8.139.985 6,2
Algodão 42.366 1.057.034 40
Laranja 38.753 803.000 48
Fontes: Sindag / IBGE / Mapa

A movimentação favorável aos venenos agrícolas vem ganhando força junto com o crescimento do mercado nacional, que foi de 27% apenas entre 2007 e 2008. Com grande área plantada e baixo controle sobre produtos legais e ilegais, o consumo interno de agrotóxicos está no topo do ranking mundial, ultrapassando o dos Estados Unidos.

O faturamento líquido do mercado brasileiro de agrotóxicos chegou a US$ 7,1 bilhões no ano passado, ou mais de 14 bilhões de reais. No período, foram usadas 674 mil toneladas, mais da metade em herbicidas. Atreladas ao tamanho da área plantada (veja quadro), as maiores aplicações se deram nas culturas de soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e cítricos. No Brasil estão liberados para uso na agricultura 1.412 agrotóxicos, elaborados com quase 500 substâncias. Os agroquímicos são apontados como necessários para manter a produção em lavouras convencionais e transgênicas. “Sem esses produtos, cada vez mais terra seria necessária para manter os níveis de produção”, avaliou João Carlos Carvalho, do Ipea.

Conforme o deputado Edson Duarte, o farto uso de agrotóxicos no Brasil revela uma “mistura explosiva” de falta de controle público sobre a produção rural com lideranças politicamente comprometidas a manter um modelo agrícola altamente dependente de agroquímicos. “Produtores e revendedores de agrotóxicos são grandes financiadores de campanhas eleitorais, permitindo a eleição de políticos com conceitos atrasados, como o de que um maior uso de agrotóxicos se traduz em bom desempenho do agronegócio”, disse.

Um mercado tão amplo e lucrativo vem cerrando fileiras para derrubar barreiras legais a um maior consumo de substâncias tóxicas. E uma delas são as reavaliações, que incidem inclusive sobre químicos barrados em outros países e regiões, como Estados Unidos, União Européia, China e Índia. Das 14 substâncias em reavaliação desde o ano passado (veja aqui), doze já foram proibidas no exterior, diz a Anvisa. “Os conhecimentos científicos avançam e vão apontando perigos antes desconhecidos de certas substâncias. Mas as reavaliações não necessariamente irão tirar os 14 produtos do mercado”, disse José Silva, diretor da agência.

Pelo menos três dessas substâncias já têm notas técnicas prontas para sua reavaliação. Seus fabricantes já pediram audiências com a Anvisa para debater a situação. Esta semana, representantes do setor foram à Casa Civil para tentar reverter os processos.

Além do uso em larga escala, preocupa a área de saúde a entrada no país de substâncias já descartadas lá fora. Isso ficou comprovado pelos últimos números oficiais sobre resíduos de venenos encontrados em alimentos. Foram verificadas substâncias proibidas no país ou acima das quantidades recomendadas em vários produtos, bem como agrotóxicos não aprovados para algumas culturas. Veja aqui.

Conforme dados oficiais, a importação dos inseticidas metamidofós e paration metílico superou nos primeiros cinco meses deste ano a registrada em todo o ano passado. Eles vêm de fornecedores como China e ilha de Taiwan, são registradas no Brasil como altamente tóxicas e usadas em vários produtos comerciais. O metamidofós foi encontrado irregularmente em culturas de alface e de morango nas últimas avaliações da Anvisa, além de em quantidade excessiva no tomate, onde tem uso permitido. O paration também foi localizado em alimentos pelo órgão oficial, mas teria sido banido na China em 2008.

“Avisamos (desde o início das reavaliações) que esses produtos acabariam vindo para cá, transformando o Brasil num grande depósito de lixo. Muitas vezes a saúde da população é colocada atrás de interesses comerciais. Além disso, usar substâncias em doses elevadas ou proibidas para algumas culturas pode fazer com que, na hora da colheita, ainda se tenha ali uma dose elevada de agrotóxico. Isso tudo porque no Brasil não se segue a legislação e se usa um modelo perverso de produção de alimentos, com monoculturas que facilitam a disseminação de pragas e aumentam a necessidade de agrotóxicos. Hoje o agrotóxico não atinge só o agricultor, ele está na mesa do brasileiro”, ressaltou Rosany Bochner, diretora do Sinitox.

Reserva de mercado

Para um novo agrotóxico chegar ao mercado interno, depende do aval das áreas de meio ambiente, agricultura e saúde. Um registro aprovado só perde a validade frente a uma reavaliação. Para comprar um desses produtos, o agricultor deve ter uma receita assinada por um engenheiro agrônomo ou florestal, com uso restrito à indicação do defensivo. Ou seja, um veneno para cada cultura. Há pressão no parlamento para que liberações comerciais dependam de avaliações simplificadas e para que os agrotóxicos possam ser aplicados em grupos inteiros de alimentos.

Hoje, cinco empresas detêm 70% do mercado global de agrotóxicos, fazendo com que a maioria das lavouras tenha seus produtos. Conforme José Silva, diretor da Anvisa, no Brasil há casos de empresas registrando agrotóxicos e não os produzindo, “fazendo reserva de mercado e onerando a agricultura nacional”. “Estamos junto com qualquer segmento que quiser mudar a legislação brasileira para acabar com o monopólio de mercado que existe em alguns produtos”, ressaltou.

Conforme Joao Carvalho, pesquisador do Ipea, a atuação dos órgãos de saúde para registro de agrotóxicos acabou elevando os preços desses produtos no Brasil. Por isso ele afirma que hoje o país é maior consumidor em preço e não em quantidade de agroquímicos. “O preço aqui é altíssimo, o que também provocou o contrabando de substâncias ilegais. Hoje os produtores brasileiros pagam cerca de US$ 2,5 bilhões acima do valor de mercado de outros países”, comentou.

O diretor da Anvisa também alertou que as reavaliações são necessárias para ajustar a produção interna aos níveis internacionais de proteção da saúde e às exigências de mercado de países que proibiram certas substâncias tóxicas. Assim, evita-se dois padrões para produção de alimentos, um para o consumo interno e outro para exportações. “Com as reavaliações estamos protegendo o produtor e o consumidor brasileiros, bem como quem vai exportar para países que vetaram algumas substâncias. Sabemos do nosso compromisso com a agricultura brasileira, mas temos que garantir que esse controle não tenha um padrão interno e outro para exportação”, disse Silva.

Efeitos colaterais

Reduzindo riscos

Para reduzir o risco de contaminação por agrotóxicos potentes como organofosforados e carbamatos, lave bem os alimentos em uma solução com uma colher de sopa de bicarbonato de sódio para cada litro de água. Isso elimina metade dos resíduos dessas substâncias. A medida não dispensa uma lavagem com vinagre e detergente, que ajudam a eliminar outros contaminantes e microorganismos. As dicas são do médico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mauro Velho de Castro Faria.
Já a Anvisa avalia que, dependendo do nível de contaminação, pouco se pode fazer para driblar a ingestão de agrotóxicos. Para a agência, lavagens só adiantariam frente a bactérias. As recomendações oficias incluem retirar folhas externas e cascas dos alimentos, consumir produtos da época e de produção local, variar a alimentação para evitar exposição a riscos constantes, consumir produtos sem venenos, como orgânicos ou agroecológicos.

O Sinitox coleta dados em 18 estados brasileiros e no Distrito Federal. Os últimos números são de 2007 e revelam cem mil intoxicações e quase quinhentas mortes no período. Os principais intoxicantes são medicamentos, animais peçonhentos e produtos de limpeza; mas a maioria das mortes é provocada por agrotóxicos, seguidos por drogas e raticidas.

“Aqui no Sinitox pegamos só a pontinha do iceberg, só as intoxicações agudas. Logo, o número de casos pode ser muito maior, pois a maioria das intoxicações é crônica e ignorada pelos médicos como sintomas decorrentes do uso ou consumo de agrotóxicos”, explicou Rosany Bochner, diretora do serviço.

Recentemente, a Anvisa definiu que até 2011 a cihexatina não deverá ser mais usada no Brasil, como já ocorreu nos Estados Unidos, Reino Unido, Japão, China e Áustria. A importação e o registro de novos produtos com a substância já estão proibidos. Ela é usada na produção de sete agrotóxicos, usados basicamente no cultivo de maçã, morango, pêssego, café e berinjela. Conforme a agência, ela pode causar má formação fetal, danos à pele, pulmões, visão, fígado e rins, além de risco de abortos e prejudicar o sistema reprodutivo.

A lista de problemas potencialmente provocados pela cihexatina é comum a uma série de outros agrotóxicos em uso no país. Conforme a farmacêutica Paula Sarcinelli, da Escola Nacional de Saúde Pública, a ingestão excessiva de agrotóxicos, inseticidas, acaricidas e herbicidas pode provocar efeitos colaterais como dor de cabeça, paralisia de membros, problemas neurológicos, câncer, infertilidade. E tudo depende das doses e do tempo de exposição aos contaminantes, através dos alimentos, água e ar.

“Poucas substâncias têm riscos toxicológicos completamente avaliados e faltam estudos sobre intoxicações crônicas provocadas por uma ou mais substâncias simultaneamente, com pequenas doses em longo prazo, associadas a uma série de doenças. Esse é o grande desafio da atualidade. Por isso, as doses possíveis para consumo diário humano têm que ser reavaliadas com frequência pelas agências nacionais e internacionais”, disse.

O público mais sensível aos agrotóxicos são crianças, com sistemas vitais em formação, idosos, com baixo metabolismo e organismo enfraquecido. Em 2007, o Sistema Único de Saúde custeou despesas de 640.325 internações hospitalares para tratamento de câncer.

Atalhos:
Sinitox
Escola Nacional de Saúde Pública
O glifosato estimula a morte das células de embriões humanos

Saiba mais:
Câncer e outras doenças ambientais
Primavera silenciosa em versão nacional

A Revolução Verde é insustentável
Debate sobre agrotóxicos no Brasil
Vamos envenenar as águas?
Farra geneticamente modificada

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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