Em Brasília, o relógio marca 4h30 da manhã, mas, como para os bichos não existe esta história de horário de verão, é às 3h30 do “horário de Deus” que o ornitólogo Fábio Schunck desperta para realizar seu trabalho.
Há cerca de oito meses, o pesquisador faz o levantamento das aves existentes no Núcleo Curucutu do Parque Estadual da Serra do Mar, a cerca de 70 quilômetros do centro da cidade de São Paulo. Pelo projeto, desenvolvido sob orientação do ornitólogo Luis Fábio Silveira, da USP, e patrocinado pela Fundação O Boticário, Schunck realiza visitas trimestrais no Parque, cada uma com duração de cerca de 20 dias.
Lá, o ornitólogo utiliza três métodos de campo: colocação de redes, censo e observações. O trabalho com as redes talvez seja o mais difícil. Os locais são acessíveis, geralmente, por trilhas na mata fechada. A dificuldade é ainda maior quando um novo local deve ser analisado, já que as redes e material de anilhamento dos pássaros são carregados de cima para baixo, independente da irregularidade do terreno ou dificuldade de acesso.
Chegando ao local desejado, dois grupos de 10 redes são instalados a cerca de 100 metros de uma base. Geralmente, as redes permanecem abertas das 5h da manhã às 17h30, com monitoramentos feitos de hora em hora. Coletados os pássaros, o ornitólogo anota dados como espécie, idade, mudas, sinais que indicam a fase do ciclo reprodutivo, peso, tamanho da asa, cauda e bico. Após anilhado, o pássaro é solto.
No trabalho de censo, Schunck anota a espécie e se a identificação foi visual ou auditiva. Também são registrados o extrato em que o pássaro estava – chão, baixo, alto, médio ou emergente – e a atividade que a espécie estava desenvolvendo na hora da observação – alimentando-se, em descanso, sobrevôo, passagem, batidas, canto, batidas com bico, asas etc.
“Às vezes é cansativo ficar 20 dias no mato”, confessa Schunck. “Mas eu vibro quando vejo um bicho e é isso que tem que acontecer. Você tem que vibrar”, defende ele. O pesquisador também anda sempre munido de seu mp3, aparelho onde guarda o canto de centenas de aves e que é usado para atrair as espécies sempre que o ornitólogo avista um pássaro diferente.
O resultado de tanto trabalho é expressivo. “Entre maio e dezembro de 2007, em três viagens de campo, registramos aproximadamente 250 espécies de aves. Destas 51 são consideradas indicadoras da qualidade ambiental, 100 endêmicas para a Mata Atlântica, 22 ameaçadas de extinção no Estado de São Paulo e seis ameaçadas de extinção no Brasil”, diz o ornitólogo. Segundo ele, somente com a viagem da primavera, a lista do Núcleo teve 55 acréscimos.
Além do aumento no número de espécies endêmicas da região, o trabalho também já trouxe belas surpresas a Schunck: até o momento, foram feitos sete novos registros para o município de São Paulo, localidade considerada como uma das mais conhecidas ornitologicamente do Brasil, com 420 espécies registradas.
Entre os registros que o surpreenderam está o do periquito apuim-de-costas-pretas (Touit melanonotus), descrito pela primeira vez em 1820, pelo naturalista alemão Maximilian zu Wied-Neuwied, que coletou esta espécie no Rio Peruype, ao sul da Bahia, próximo a Caravelas. Em quase duzentos anos, a espécie nunca havia sido fotografada na natureza.
Um dos menores periquitos existentes – cerca de 15 cm – e de hábitos muito discretos, o apuim-de-costas-pretas só foi visto algumas vezes por pesquisadores e poucos foram coletados: no Muzeu de Zoologia da USP existem somente quatro exemplares. Segundo Schunk, em 2005 um exemplar da espécie caiu em uma casa em Ubatuba e foi fotografado, fato que possibilitou o registro da cor real do anel em torno dos olhos. A cor verdadeira é laranja e não creme, como se apresentava em espécies de museus e que tiveram a coloração do anel desbotada devido à técnica de conservação e ao tempo.
Em outra ocasião, a voz do apuim-de-costas-pretas foi gravada. No entanto, entre os 35 registros existentes, há muitos não documentados ou não confiáveis. “Nossa idéia é escrever um artigo e aproveitar a oportunidade para convidar as pessoas a disponibilizarem seus registros, para fazermos um trabalho mais completo”, disse Schunck.
Além do apuim-de-costas-pretas, o ornitólogo também já teve outros agradáveis “encontros” no Curucutu. Um deles foi com o beija-flor rajado (Ramphodon naevius), típico das matas baixas do litoral e encostas, mas que andou visitando as serras nebulares do Núcleo. O pesquisador também se surpreendeu ao encontrar um curió (Sporophila angolensis), espécie que há várias décadas encontra-se ameaçada devido ao seu belo canto. “O projeto ainda tem um ano pela frente e muitos registros interessantes devem aparecer”, diz.
O censo dos sapos
Quem também se enveredou pelas matas do Curucutu para identificar um pouco da diversidade da fauna local foi o herpetólogo Leo Malagoli. Seu projeto “Diversidade e distribuição dos anfíbios-anuros em diferentes fisionomias do Núcleo Curucutu”, financiado pelo programa Biota-Fapesp e desenvolvido em parceria com o laboratório de Herpetologia do Departamento de Zoologia da Unesp Rio Claro, vem sendo desenvolvido há cerca de dois anos.
Todos os meses, Malagoli passa cerca de oito dias no Curucutu coletando e registrando rãs, sapos e pererecas. Seu trabalho é feito em dois momentos: durante o dia, com a coleta de espécies em armadilhas de interceptação e queda (pitfall traps), e durante a noite, com a busca ativa. No Núcleo, foram instaladas 80 armadilhas em oito pontos fixos. Ao coletar os animais que caem nos baldes, o pesquisador os fotografa, anota suas características e amputa um dos dedos de uma das patas traseiras. “Esse procedimento é comum e me dá uma noção de abundância”, explica.
A busca ativa tem início com o anoitecer, por volta das 20h30, e dura até o começo da madrugada. Nela, o pesquisador coleta espécies novas ou que ainda não constavam em seus arquivos e grava o coaxar dos animais. Até o momento, já foram registradas mais de 50 espécies. “Com certeza tem mais do que este montante, pois existem bichos cuja classificação ainda está confusa devido à deficiência de mais amostragens e material em coleções. Mas, mesmo assim, é muita coisa”, diz.
Das espécies registradas, o herpetólogo identificou quatro ameaçadas de extinção. No entanto, ele alerta para o fato de que tais animais constam na lista que foi produzida pelo Estado há mais de dez anos. “A lista está completamente desatualizada”, diz, lembrando que o número de espécies ameaçadas deve ser bem maior.
Além da grande diversidade, Malagoli também comemora a identificação de, pelo menos, três novas espécies: uma rã-de-corredeira – Hylodes sp. (gr. Lateristrigatus), uma rã-da-mata – Ischnocnema sp. (gr. Láctea), e uma perereca – Scinax sp. (gr. Catharinae). “O Parque era desconhecido em termos científicos. De 1998, 1999, para cá a coisa começou a acontecer, mas ainda há muito potencial a ser explorado na parte de levantamento de mamíferos, répteis. O Curucutu está deixando de ser a terra que o mundo esqueceu”, defende Malagoli. O levantamento dos anfíbios-anuros do Curucutu vai até dezembro de 2008.
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