Reportagens

As cicatrizes no verde da Serra do Mar

Pressões humanas no Parque Estadual da Serra do Mar começam a ser resolvidas com programa de recuperação. Cerca de 5 mil famílias serão retiradas da unidade, até 2012

Redação ((o))eco ·
10 de fevereiro de 2009 · 16 anos atrás

O Parque Estadual da Serra do Mar, em São Paulo, é a maior unidade de conservação de proteção integral da Mata Atlântica. Ela foi criada para assegurar que o pouco de mata que resta na costa paulista fosse mantido em pé, abrigando 373 espécies de aves, 111 de mamíferos, 144 de anfíbios e 46 de répteis, muitas delas ameaçadas de extinção, além de fornecer água e espaço para lazer. Mas, mesmo sendo uma unidade de restrição máxima às ações humanas, não ficou incólume. A esperança está em um programa de recuperação do governo estadual, hoje em sua quarta etapa de execução.

Quase toda a chaga da Serra do Mar fica na cidade de Cubatão, em áreas no entorno da rodovia Anchieta, que liga a capital à Baixada Santista. Ali, o problema é antigo. A ocupação começou ainda na época da construção da rodovia, em 1929. Para facilitar a vida dos trabalhadores, foram construídos barracões que funcionavam como dormitórios. Quando a estrada ficou pronta, muitos dos trabalhadores permaneceram na região, trazendo famílias e transformando o que era provisório em definitivo.

Desde a época da criação do parque, em 1977, as várias comunidades que se formaram no entorno da rodovia tornaram-se um problema para o governo paulista. Como regularizar áreas protegidas não é tarefa fácil, em 1994 a situação foi “resolvida” com uma lei estadual, determinando que as áreas ocupadas simplesmente deixassem de ser parque, imprimindo no desenho da unidade uma série de “buracos”.

Atualmente, nos bairros Cota 95-100, 200 e 400, assim chamados pela altitude na encosta da serra, Pinhal do Miranda e Água Fria/Pilões, todos dentro do parque, somam 7.500 famílias. São cerca de 30 mil pessoas vivendo em áreas onde antes moravam onças-pintadas, bugios e papagaios-de-cara-roxa e que, ainda hoje, abrigam mananciais responsáveis pelo abastecimento de 70% da Baixada Santista. Como se não bastasse a descaracterização total da mata excluída da unidade, ainda hoje as regiões sofrem com a expansão de ocupações, todas irregulares.

Operação limpeza geral

Para tentar resolver o problema, há dois anos o governo estadual iniciou o Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar, do qual participam secretarias como da Habitação, Meio Ambiente e Segurança Pública, em parceria com órgãos como a Prefeitura de Cubatão e a Procuradoria-Geral do Estado. O programa custou R$ 1 bilhão, divido entre Banco Inter-americano de Desenvolvimento – BID (45%), governo estadual (45%) e governo federal (10%). Seu objetivo é restaurar e conservar as funções ambientais das áreas inadequadamente ocupadas da Serra do Mar. Tarefa digna de Hércules, tamanho o pepino da região.

Segundo o coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, comandante da Polícia Militar e um dos principais coordenadores do programa, a primeira ação desenvolvida pelo governo foi “congelar” as ocupações, aumentando a fiscalização nos bairros e proibindo que qualquer reforma ou construção fosse feita sem autorização ambiental. “Hoje, os bairros são fiscalizados por 76 policiais ambientais, que contam com dez viaturas e trabalham em rodízio de 24 horas. Desde 2007, também proibimos a entrada de material de construção”, explica o coronel.

Em seguida, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) identificou ocupações em áreas de risco, como nas encostas, com alta probabilidade de desabamento. As famílias nesses locais seriam prioritárias para desocupação. Na terceira etapa, identificou-se o perfil da população. Segundo levantamento oficial, sete em cada dez famílias no entorno da rodovia ganham entre um e dois salários mínimos, 4% dos habitantes têm mais de 30 anos, 13,5% são aposentados, há cerca de 70 templos religiosos, duas grandes escolas e há alto índice de pessoas com apenas primeiro e segundo grau escolar.

Mas, por lá, não moram só pessoas de baixa renda. Sendo o coronel Eclair, há também grandes e luxuosas casas e alguns de seus moradores são arquitetos, vereadores ou advogados. Vale lembrar que todas as ocupações dali não são regulares.

O programa está agora na etapa de construção das casas para onde devem ir os moradores retirados dos bairros Cota. Até 2012, devem ser retiradas cerca de 5 mil famílias da serra e realocadas em habitações construídas em áreas já degradadas no pé da Serra do Mar. As casas serão pagas pelos novos moradores, em prestações que não ultrapassem 15% da renda familiar mensal. “Não haverá compensação ou indenização, porque isso só pode ser feito para populações tradicionais ou ribeirinhas, o que não é o caso”, explica o coronel Eclair. No final de janeiro, foi realizada licitação para decidir a empresa que será responsável pela obra.

Depois de retirados os moradores, a idéia é reflorestar o que foi desmatado. As estimativas são de 800 mil metros quadrados de plantios. O governo estadual já tem 200 mil mudas para o trabalho. AS famílias que ficam no local serão beneficiadas com os trabalhos de outra parte do programa, de recuperação e urbanização dos bairros. A integridade do parque deve ser mantida por meio de fiscalização pesada sobre os moradores que ficarem. Para isso, em cada bairro será construída uma via que deve circundar os limites da ocupação. Nela, haverá fiscalização motorizada durante 24 horas.

Cicatriz aberta

Apesar de bem planejado, o programa tem seus poréns. Isso porque as áreas ocupadas do parque não serão totalmente liberadas. Algumas famílias permanecerão no local. Quando questionado se não seria melhor para a manutenção da biodiversidade que todas as famílias fossem retiradas, coronel Eclair deu um argumento capaz de calar a boca de qualquer governo. “Não compensa financeiramente desocupar. Com o dinheiro que gastaríamos daria para comprar áreas de quatro a cinco vezes maiores (em relação aos bairros) a serem incorporadas ao parque”, explica. E os corredores ecológicos? “Não existe mais bicho ali”, argumentou o coronel.

Para o professor Ricardo Rodrigues, da Escola Superior Luiz de Queiroz (Esalq/USP), este pensamento não pode ser tão simplista. Segundo ele, corredores ecológicos podem se regenerar e os bichos tendem a voltar aos seus locais de origem. Além disso, o custo ambiental deve ser muito bem analisado para se tomar esta decisão. “Não diria que esta opção é tão obvia”, argumenta.

Talvez a opção por não desafetar toda a área esteja ligada aos motivos que levaram o governo estadual a implementar o programa. De acordo com Mário Mantovani, diretor de Relações Institucionais da não-governamental Fundação SOS Mata Atlântica, o poder público voltou os olhos para a região somente quando o risco de desabamento nas encostas ocupadas se tornou iminente. “Em 1986, o IPT fez um laudo dizendo que, se houvesse um desabamento ali, a estrutura portuária de Cubatão pararia. Somente neste governo, depois de perceberem que a situação estava muito crítica, é que resolveram tomar alguma atitude”, diz.

Segundo Mantovani, o lado bom deste início do programa, além da recuperação em si, está no fato de que, pela primeira vez, a questão ambiental foi colocada no mesmo patamar de importância de outros objetivos, com o social e o econômico. “A recuperação é apenas um dos componentes do processo de estabilização da Serra do Mar. Ninguém pensa primeiramente na conservação, mas ela foi considerada, por isso estamos apoiando (o projeto)”, explica.

 

 

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