Em visita ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) de Natal (RN), o biólogo Marcelo Sathler presenciou a chegada de mais de 300 canários-da-terra retirados das mãos de traficantes. Os pássaros foram colocados em um viveiro onde caberiam no máximo cem deles. “Imagina, você colocar uma espécie que é territorial, utilizada para brigas ilegais justamente por essa característica, nessa quantidade e nessas condições”, ressaltou. “Eles ficavam voando, dando bicadas uns nos outros. O dia inteiro”, relembra.
A situação dos canários registrada em Natal é apenas um dos relatos de acomodação precária dentro dos Cetas, ligados ao Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente). Durante a pesquisa de campo para o seu trabalho de conclusão de curso – Os reflexos negativos da relação de populações humanas e a fauna silvestre -, apresentado no Centro Universitário de Vila Velha (ES), Sathler encontrou vários casos semelhantes nos 13 centros que visitou (lista abaixo), em estado do Nordeste e Sudeste. Ele percorreu, ao todo, cerca de sete mil quilômetros no Brasil, entre 2006 e 2007.
“Os Cetas têm a finalidade de recepcionar e tratar animais silvestres resgatados ou apreendidos pelos órgãos fiscalizadores, assim como eventualmente, receber animais de particulares que os mantinham em cativeiro doméstico”. A página do Ibama informa que existem 50 desses estabelecimentos no país, sendo 27 administrados só pelo órgão federal e 23 em parceria com organizações não-governamentais (ongs) ou empresas. Clique aqui e confira distribuição de Cetas no país.
No entanto, os bichos que vão para esses centros muitas vezes passam por situações semelhantes às sofridas em poder de contrabandistas ou quando em cativeiros domésticos, constatou Sathler em sua pesquisa. Ele encontrou répteis amontoados em tanques e viveiros remendados com placas de sinalização. Essas condições, aliadas aos maus tratos dispensados por bandidos ou donos desleixados, fazem com que a taxa de mortalidade nos centros de triagem gire em torno de 20% a 30%, conforme os dados coletados pelo biólogo. “Quando um centro recebe muitos animais, pode acontecer superlotação, briga nos viveiros, menos comida para cada animal e fácil disseminação de doenças e mortes”, explicou o biólogo.
Mas ele também atribui parte dos problemas aos altos custos de se manter um espaço como esses. Por isso, Sathler avalia que, nos estabelecimentos onde há parcerias com ongs ou empresas, a situação é melhor do que nos mantidos exclusivamente pelo Ibama.
Segundo a técnica da Diretoria do Uso Sustentável da Biodiversidade do órgão federal, Ana Raquel Faria, será aberto concurso público com destinação de pessoal para os centros, além da reforma dos já existentes e implantação de novos estabelecimentos. “A situação dos Cetas está melhorando gradativamente”, avalia.
Como é difícil a liberdade
Para o presidente da ong SOS Fauna, Marcelo Pavlenco,“o maior problema dos Cetas é não fazer a fila andar”, ou seja, não há um esquema para a reintrodução dos animais na natureza. “Não adianta ter um monte de Cetas, viram um depósito de bichos”, afirmou.
De acordo com Marcelo Sather, um dos fatores que dificulta a soltura é que grande parte dos bichos sai de regiões menos desenvolvidas economicamente, como o Nordeste, e vão para o Centro-Sul, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, bem distantes do seu habitat natural e onde se concentram os centros de triagem no país.
Por isso, Pavlenco ressalta a importância de que exista uma coordenação nacional de fauna para articular as ações, da apreensão à reintegração. Ele considera possível, inclusive, a cooperação com outros países para o repatriamento de espécies estrangeiras. Os animais vindos de outros países são minoria, mas ajudam a piorar a superlotação nos centros.
Para corrigir essa deficiência, Ana Raquel, do Ibama, assegurou que já está sendo elaborada uma rede de centros de triagem para que haja parceria e melhor comunicação entre eles, facilitando a reintegração de animais a seus locais de origem.
Existe, ainda, o problema de que nem todos os “habitantes” dos centros de triagem podem ser libertados, como frisou Ana Raquel. De acordo com ela, espécies vindas de outros países e os mantidos por muito tempo em cativeiros formam uma “população”, tornando-se residentes permanentes desses estabelecimentos. Os estrangeiros não são soltos porque podem causar desequilíbrios ecológicos e, os domesticados, simplesmente não sobreviveriam.
De volta à natureza?
Os métodos e critérios de libertação também foram objeto de análise de Sathler. Ele destaca o termo “soltura” ao invés de “reintrodução”. “Soltura é simplesmente soltar o animal na natureza. Na reintrodução, você estuda a área para ver a compatibilidade, faz uma preparação e ao liberar o espécime, monitora. Reintrodução é caríssima, por isso quase nunca acontece. Nenhum dos Cetas que eu passei faziam reintrodução”, revelou o biólogo.
Um animal simplesmente solto na natureza tem poucas chances de sobrevivência, segundo ele, porque irá competir em desvantagem, sem conhecer o território, como aqueles que já estão na região. Sathler afirmou, também, que durante a sua pesquisa se deparou com dados de liberações de animais em áreas nas quais não são naturais, realizadas por “polícias ambientais”. “A polícia ambiental, que é um órgão estadual, pode fazer soltura. No Brasil, temos mais de 1.800 aves conhecidas. É super complexo para um biólogo saber quem é quem, imagina para um policial”, destacou.
O chefe da Comunicação da Polícia Militar de São Paulo, tenente Marcelo Robis, defendeu a atuação da corporação nos casos de soltura. Segundo ele, os policiais só libertam animais com características que indiquem que acabaram de ser capturados. Pelos dados repassados por Robis, a polícia ambiental paulista soltou 30% dos animais apreendidos em 2007, totalizando 8.758 espécimes, na maioria aves. Outros 19.500 foram parar em criadouros ou zoológicos.
Ainda de acordo com esses dados, a polícia paulista apreendeu 29.002 animais no ano passado, o que equivale a cerca de 60% do movimento de bichos levados aos Cetas de todo o Brasil. Mas, como grande parte deles é oriunda de outros estados, Robis reclama da falta de cooperação entre as unidades da federação. “Como a fauna é um problema nacional, o esforço teria que ser nacional”, defendeu.
O tenente disse, ainda, que existe a necessidade de um planejamento para o combate aos crimes contra a fauna que vá além da ação policial. “Eu não consigo vislumbrar uma maneira de resolver o problema da fauna de maneira isolada, só em um estado, ou só com ação policial”, desabafou.
Nessa linha de pensamento, Ana Faria, do Ibama, aposta no chamado Programa Nacional de Educação Ambiental. A idéia é conscientizar a população sobre os danos causados pelo tráfico de animais e diminuir a demanda por espécies da fauna brasileira. “As pessoas que compram animais não têm noção da sua responsabilidade em relação ao tráfico”, afirmou.
A atuação em comunidades carentes, que muitas vezes realizam a caça e alimentam o tráfico para sobreviver, é a abordagem defendida por Marcelo Pavlenco, da SOS Fauna. Visão que encontra apoio na pesquisa de Sathler, na constatação de que, muitas vezes, o Ibama não multa portadores de espécies silvestres simplesmente porque essas pessoas não possuem condições para pagar os valores das punições. “Como a maioria dos indivíduos não possui condição de pagar as sanções, fiscais alteram a multa, de “apreensão” para “entrega espontânea”, o que não acarreta nenhum pagamento”, revelou o biólogo.
Cetas visitados em:
– Salvador (BA) – Maceió (AL) – Recife (PE) – João Pessoa (PB) – Natal (RN) – São Luiz (MA) – Tijuca do Sul (PR) – Belo Horizonte (MG) – Viçosa (MG) |
– Parque Ecológico Tiête (SP) – Centro de Reintrodução de Animais Silvestres de Aracruz (ES) – Pronto Socorro de Animais Silvestres, em Dores do Rio Preto (ES) – Divisão Técnica de Medicina Veterinária e Biologia da Fauna (SP) |
Atalhos:
Cetas
SOS Fauna
Polícia Militar Ambiental de SP
* Daniel Mello é repórter em Brasília (DF)
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