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Um dos temas mais emergenciais sobre proteção da natureza apareceu no penúltimo dia do V Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, quando os participantes já estavam suficientemente embasados com conceitos e práticas para entender sua gravidade. Pela manhã, ao falar sobre a representatividade ambiental de unidades de conservação, o ornitólogo Fábio Olmos alertou para sinais de esquizofrenia no governo.
No início da noite, quando Adalberto Veríssimo, do Imazon, mostrou que todos os trabalhos pela conservação da natureza existentes hoje no Brasil são lentos demais e incapazes de competir com a destruição descontrolada dentro dos assentamentos rurais, ficou clara a realidade que as políticas públicas ignoram: o modelo vigente de reforma agrária é incompatível com a preservação dos recursos naturais.É ela, e não mais os grandes empreendimentos, que está na mira da nata do conservacionismo reunida em Foz do Iguaçu, que julgou o tema tão urgente que lançou um dossiê sobre a tragédia ambiental da reforma agrária no Brasil.
O CD-ROM intitulado “Assentamentos de reforma agrária, meio ambiente e unidades de conservação” é a primeira publicação do Grupo Iguaçu, que promete lançar outros estudos sobre assuntos ambientalmente espinhosos nos próximos anos. Este trabalho, de autoria do próprio Fabio Olmos, explica de forma contundente em quase 50 páginas a dimensão das ameaças que os assentamentos agrários impõem à natureza e a inexistência de ferramentas para contê-la.
O que motivou o Grupo do Iguaçu a pedir a Olmos que elaborasse o dossiê foi a urgência de mostrar à opinião pública o que o pesquisador vê no trabalho de campo, testemunhando, em diferentes partes do país, o processo claro e veloz da supressão do meio ambiente em todos os lugares onde o INCRA decide assentar famílias. Em grande parte dos casos, os assentamentos se estabelecem no entorno de unidades de conservação ou em áreas prioritárias.
Tudo começou quando Olmos publicou essas impressõoes pela primeira vez e viu repercussão deste alerta nas páginas de O Eco, no ano passado. Subscreve as conclusões do trabalho o Grupo do Iguaçu, formado pelo Almirante Ibsen Gusmão Câmara, o engenheiro florestal Miguel Milano, o promotor Luciano Loubet, o biólogo Fernando Fernandez e os ambientalistas Maria de Lourdes Nunes, Clóvis Borges e o Sergio Brandt, Verônica Theulen, além do jornalista Marcos Sá Corrêa, de O Eco. Em nome do rigor das apuração e da clareza de detalhes, o histórico da ocupação arbitrária de assentamentos em lugares estratégicos para a conservação da natureza, o dossiê se concentra em três estudos de caso. Eles refletem situações diversas quanto ao tipo de conflito e à localização.
“O que mais me assusta neste trabalho é que a gente pode multiplicar esses horrores país afora”, disse o Almirante Ibsen Gusmão Câmara, durante o lançamento do CD. Na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, na região litorânea do Paraná, posseiros de uma fazenda não conseguiram a posse definitiva da terra e acionaram o Movimento dos Sem Terra (MST), que apoiou o estabelecimento deste e outros assentamentos que provocaram uma série de danos ambientais. Desmatamento, caça predatória, pesca com redes e bombas, e exploração de palmito são alguns deles, além da contaminação dos corpos d’água pela precária condição sanitária dos acampados.
No entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena existem quatro assentamentos anteriores à criação da unidade, a única federal no estado. Antas, queixadas, cervos, lobos-guarás, onças-pintadas e outras espécies já estão ameaçados. E o Incra tenta desapropriar mais áreas para reforma agrária ali, sem o aval do Ibama. “O Ministério Público foi fundamental para frear o processo ilegal, exigir respeito à legislação e coibir as ações ilegais do Incra”, diz o documento.
O último exemplo do CD revela a idéia infeliz do Incra de assentar 1.300 famílias entre o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Parque Nacional da Serra das Confusões, no Piauí. “A região implora para ser um corredor ecológico”, afirma Olmos. Lá, fica claro o oportunismo de quem quer ter “sua casa no campo”. Uma avaliação posterior do cadastro dos candidatos a assentados mostrou que profissionais liberais e funcionários públicos, mesmo do Ibama, haviam se inscrito. E isso diminui a dimensão dessa demanda social na região.
Boom-colapso
O Imazon já mediu com precisão a extensão dos danos dos assentamentos na Amazônia. Em março de 2006, um trabalho mostrou que 15% de toda destruição na região aconteceram dentro dos ineficazes Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), do Incra, em áreas de floresta. E 66% dos assentamentos entre 2002 e 2004 ocorreram na região. Para Veríssimo, esses assentamentos obedecem a uma lógica que se pode chamar de “boom-colapso”. Quer dizer, como toda a região de fronteira agrícola no entorno, eles passam por um surto de crescimento insustentável baseado principalmente na venda de madeira a serrarias ilegais. E, pouco tempo depois, destruída a floresta, caem numa economia baseada principalmente em criação de gado – o que gera pouquíssima renda aos assentados devido ao tamanho reduzido das propriedades e acaba, muitas vezes, determinando o abandono da área. “A taxa de evasão de pessoas assentadas na região beira os 80%, sendo que 90% dos assentamentos na Amazônia não são licenciados”, disse Olmos.
Comparando indicadores sociais de partes da Amazônia que vivem de economia florestal, ou que passam ainda por esse surto e outras já vivendo no colapso, Veríssimo mostra uma situação similar entre os municípios amazônicos antes e depois do “boom”. As áreas desmatadas têm um produto interno bruto (PIB) de 84 milhões de reais. Antes do colapso, seu PIB chega à ordem de 170 milhões. As florestadas, em comparação, têm PIB de 74 milhões. Ou seja, os ganhos com a floresta são praticamente equivalentes ao momento posterior, em que a área fica totalmente destruída. “É importante criar formas para tornar a floresta vantajosa economicamente no curto prazo”.
Um dos pontos mais revoltantes para o ornitólogo é a apropriação indevida do discurso ambiental pelos movimentos dos sem-terra, que são os primeiros a derrubar a floresta. “A visita a um assentamento no Brasil é o império dos absurdos”, falou Olmos, que citou um caso espantoso. “Um assentamento chamado José Lutzemberger, localizado na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, já fez manifestações contra o imperialismo das ONGs repudiando a SPVS, uma das entidades mais atuantes pela conservação da natureza no Paraná”, exemplificou.
Questão delicada
Fruto de uma política de colonização que surgiu durante a ditadura militar, o Incra, há muito, não tem mais razão de existir, segundo o Grupo Iguaçu. “Eles são uma aberração, uma forma ultrapassada de desenvolvimento”, concorda Veríssimo. O pesquisador mostra que a dificuldade de enfrentar os assentamentos está no fato de que eles aparecem com um discurso social forte, de correção de injustiças. “Quantas organizações ambientalistas se manifestaram contra a expansão da soja? Todas. E quantas contra os assentamentos?”, questiona.
Para Olmos, esta é uma força maior do que todos os estudos e justificativas técnicas para proteger o que resta dos recursos naturais por uma outra contradição. “Vocês sabem a burocracia que é para se criar unidades de conservação no Brasil, cujo processo envolve consultas públicas, pesquisas, avaliação do governo e decreto presidencial. Por outro lado, basta a assinatura de um quinto escalão do Incra em uma de suas unidades no interior para estabelecer um assentamento no entorno de alguma unidade de conservação ou em áreas prioritárias”, lembra.
Depois da exposição desse cenário sombrio, Wigold Schäffer, do Ministério do Meio Ambiente, fez questão de lembrar que pelo menos a Mata Atlântica ganhou mais um instrumento legal para evitar sua destruição por assentamentos. “A lei da Mata Atlântica tem um artigo que proíbe qualquer supressão de vegetação para fins de reforma agrária”. Esta pode ser uma das soluções para os outros biomas ameaçados pelos assentamentos, na posição de Olmos, que vai entregar o dossiê para pedir providências do Ministério Público.
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