Pode parecer estranho, mas só mesmo a paixão pela pesquisa faz alguém passar semanas em trilhas, em locais remotos, dias e noites na busca por fezes de animais, pegadas, visualizações, vocalizações. É preciso paciência para acompanhar uma rotina dessas, cujo rigor só dá lugar ao encantamento do próprio pesquisador quando ele sabe que seu esforço valeu registros importantes, capazes de valorizar e tirar do papel muitas unidades de conservação.
Um desses momentos aconteceu com o pesquisador Julio Dalponte, quando conseguiu capturar um rato-toró durante a expedição científica ao Parque do Juruena. “As pessoas não vêem esse bicho, só escutam. Tratam-no como uma lenda. Agora poderemos conhecê-lo melhor”, diz. As armadilhas para os morcegos também renderam bons resultados. “Só na primeira campanha identificamos 26 espécies. Agora, na segunda, ampliamos para 30. Isso, para um diagnóstico, é muito bom”, relata o pesquisador. Sua equipe registrou ainda 15 espécies de primatas nas duas campanhas que fez ao Juruena, e assim conseguiu ampliar a distribuição de alguns gêneros, como um tipo de sagüi e um zogue-zogue, para áreas tidas como incógnitas para a Ciência até então.
Mas muito do que o pesquisador viu em campo não vai virar publicação científica nem registro oficial para o parque, por enquanto. “Não nos deixaram coletar primatas, isso prejudica muito o trabalho de pesquisa. Vimos algumas coisas estranhas e precisamos coletar para saber. Se não for assim, você não acessa a biodiversidade, não chega à taxonomia”, defende Dalponte. Seu lamento se deve às restrições na licença que recebeu através do Sisbio, do Instituto Chico Mendes (ICMBio). O sistema on-line, que completou um ano de vida em março, é responsável pelas autorizações de coleta, captura e transporte de material biológico dentro e fora de unidades de conservação.
O sistema se propõe a dar mais agilidade à obtenção de licenças de pesquisa, que até um ano atrás, tinha que ser feita no papel nas unidades regionais do Ibama. E, a maioria reconhece que, de mão em mão, a espera por uma resposta era bem maior. Na opinião de Ugo Vercillo, coordenador-geral de pesquisa do ICMBio, uma das principais vantagens do Sisbio é permitir a análise simultânea do pedido entre todos os pareceristas. “O pesquisador também acompanha em tempo real a análise do pedido dele e ainda imprime a licença em casa”, lembra.
Apesar dessa vantagem, o pesquisador Dalponte ainda se questiona sobre os critérios que fizeram, por exemplo, o sistema autorizar a coleta de primatas, em novembro passado, na primeira expedição ao sul do parque, mas o impediram de fazer o mesmo em março deste ano, quando retornou à unidade de conservação. “Não entendo como para um roedor marsupial a coleta é à vontade. Mas primatas não, carnívoros também não, justamente espécies que costumam ser as mais carismáticas”, diz ele, que apesar da informatização do Sisbio, ainda reclama de burocracia e inexperiência na emissão das licenças. “Não é possível autorizarem a coleta de cervídeos (família dos veados) e desautorizarem o uso de arma de fogo”, indaga Dalponte. Segundo ele, sem o instrumento é praticamente impossível capturar esse tipo de animal. “Para priorizar áreas para conservação, é preciso avaliá-las. A coleta tem que ser autorizada e disciplinada”, considera o pesquisador.
Desempenho do sistema
É exatamente isso que está acontecendo hoje, de acordo com Vercillo. “Nós não temos o menor interesse em causar dificuldade na elaboração dos planos de manejo, ou em qualquer pesquisa nas unidades de conservação”, declara, ressalvando que o Sisbio está apenas em seu primeiro ano e precisa de ajustes com a colaboração dos próprios pesquisadores.
Ele assegura que as negativas aos pedidos de licença são uma raridade. “Na maioria das vezes, quando há dúvida sugerimos ajustes. Nós só negamos alguma licença quando não há embasamento científico. Isso equivale a 3% dos casos”, explica. Em um ano, o Sisbio registrou cerca de 1900 solicitações para pesquisa. Ainda segundo Vercillo, o percentual de indeferimentos para pedidos de licença permanente aos pesquisadores também é baixo, 7%.
Ele comemora os bons índices registrados no Sisbio. Apontam que 224 das 293 unidades de conservação federais estão sendo pesquisadas atualmente. Os estudos concentram-se na Mata Atlântica (36%), seguido dos biomas Amazônia (18%), Costeiro e Marinho (17%) e Cerrado (16%). Nos últimos seis meses 77% das autorizações solicitadas saíram em até 45 dias úteis, sendo 130 autorizações emitidas em menos de 15 dias. “Se um projeto ocorre em mais de uma unidade de conservação ou com mais de um grupo taxonômico, passa pela análise de mais gente. Se envolve espécies ameaçadas, a avaliação é feita em uma outra instância”, explica. “Mas se porventura o pesquisador entender que a análise feita não foi justa, ele pode pedir uma reanálise. Existe esse contato entre ele e o parecerista para que possam ajustar melhor o projeto”, diz o coordenador.
Experiências reais
Este foi o caso da mastozoóloga Andressa Gatti, especialista no estudo das antas, que leciona na Escola Superior Francisco de Assis (ES). Ela esperou três meses para obter uma licença que autorizava tão somente a coleta de fezes de antas na Reserva Biológica Sooretama, no Espírito Santo. “Depois recebi um e-mail com um pedido desculpas pela demora”, recorda-se. Ela tomou a iniciativa de entrar em contato com operadores do Sisbio e soube que seus pareceres tinham sido contraditórios, por isso seriam avaliados em uma instância superior. “Nunca tive licença negada. O que eles pedem são esclarecimentos sobre alguns pontos, como se espécies vegetais que também iríamos coletar são ameaçadas, inserção do currículo lattes na ficha, esses detalhes”, diz Andressa, que orienta monografias na área envolvendo projetos de coletas e capturas.
Tudo foi mais fácil quando, em um outro pedido, a pesquisadora manteve contato direto com o chefe da unidade de conservação, que agilizou o processo. Para uma solicitação de aula de campo na Reserva Biológica do Córrego Grande (ES), Andressa conta que a aprovação da licença não demorou nem 15 dias para sair. Ao que tudo indica, o bom relacionamento com os funcionários das áreas protegidas é tão ou mais determinante para a realização da pesquisa do que a própria licença.
No Pontal do Paranapanema (SP), o pesquisador Laury Cullen, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) e colegas acham que o Sisbio merece nota onze, mas nem por isso estão conseguindo realizar seus trabalhos de campo. “Nossa avaliação sobre o sistema é muito positiva. As licenças geralmente saem entre dois e três meses. O problema é conseguir entrar na unidade de conservação”, relata. Segundo Cullen, suas licenças saem com uma cláusula ressaltando que o pesquisador somente está autorizado a realizar o trabalho após anuência da unidade de conservação. “Todo mundo sabe que o IPÊ fez todo esforço para ajudar a criar a Estação Ecológica Mico-Leão-Preto, e agora não podemos entrar porque o chefe da unidade mudou e acha que a prioridade é proteção, não pesquisa”, reclama. “Estamos com quatro licenças aprovadas pelo Sisbio nas mãos, prazos correndo, recursos já liberados, mas não nos deixam entrar”.
A emissão das licenças de pesquisa é avaliada também pelos servidores lotados nas unidades de conservação. No entanto, há os que ainda não passaram por capacitações para interferir no sistema. De acordo com o analista Arthur Sakamoto, do Parque Nacional do Juruena, a demora na emissão da licença para a expedição científica foi provocada, em parte, pelo fato de todos os pesquisadores envolvidos terem feito os pedidos em uma única solicitação. Então, cada vez que algum parecerista devolvia a licença para correção, era preciso fazer um novo pedido para todas as áreas. “O certo seria fazer várias solicitações para essa expedição, cada um para um táxon diferente”, sugere. Segundo ele, embora a decisão de fazer um só pedido tenha sido do Instituto Centro de Vida (ICV), organizador da empreitada, ele reconhece que faltou orientação. “Entrei há seis meses no Ibama e nunca tinha mexido nisso”, diz.
Sakamoto explica ainda que a autorização para coleta de primatas e carnívoros foi vetada para o Juruena porque os pareceristas do Centro Brasileiro de Primatas, do ICMBio, não teriam considerado clara a metodologia da pesquisa. “Também houve uma divergência entre o centro e a Coordenação de Fauna, em Brasília”, completa. “As autorizações são concedidas se cumpridos os requisitos previstos na Instrução Normativa 154. A execução de uma pesquisa poderá ser negada nos casos de conflitos na unidade de conservação, que ponham em risco a vida dos pesquisadores”, acrescenta Ugo Vercillo, do ICMBio.
Em nome dessa segurança e da regulamentação das pesquisas o ecólogo Luis Fernando Tavares de Menezes, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) considera que eventuais demoras na emissão das licenças são justificadas. “Eu tenho autorização para coleta de material botânico em duas reservas biológicas no norte do Espírito Santo e nunca tive problema com o Sisbio”, lembra ele, que teve um dos projetos aprovados em três meses. “Eu acho que hoje se o Sisbio é criterioso em relação à coleta foi porque no passado já existiram vários problemas, como pessoas que saíam coletando sem controle”, opina a pesquisadora Andressa Gatti.
“O Sisbio é um sistema de informação sobre biodiversidade. Queremos fazer dele uma ferramenta fundamental para identificar parceiros de trabalho, mostrar áreas que ainda não foram estudadas, etc”, diz. Mas não está livre de erros. “Queremos saber quais são as dificuldades dos pesquisadores, suas críticas, para melhorarmos o Sisbio”. O coordenador afirmou que suas equipes estão trabalhando para aumentar o número de pesquisas nas unidades de conservação, inclusive aqueles estudos que requerem coleta de espécimes.
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