O ano de 2004 ainda corria quando o dono de um zoológico particular em Fortaleza (CE) se deparou com um inusitado problema: as duas chimpanzés que moravam ali estavam grávidas. Junto com o pai dos filhotes, a população chegaria a cinco indivíduos, número alto para as dimensões do terreno. Lincoln de Moraes, o proprietário, não viu outra alternativa a não ser doar os bebês para o pequeno empresário paulista Rubens Forte, à época dono de uma propriedade em Ubatuba (SP). Hoje, quatro anos e muitas disputas com o Ibama depois, Forte briga na Justiça pelo direito de continuar cuidando das jovens Debby e Megh. Seus advogados entraram com um pedido de Habeas Corpus para os animais no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que passariam a ter direitos e deveres equivalentes aos de seres humanos.
A rixa com o principal órgão de fiscalização ambiental do país começou no final daquele ano, quando Rubens Forte seguiu até Fortaleza na companhia de um motorista e de um biólogo para receber as chimpanzés. Junto com elas, Lincoln lhe entregou a nota fiscal, o contrato de doação, a Guia de Transporte Animal (documento obrigatório para distâncias intermunicipais) e os dois atestados de saúde física e mental. O único documento que o empresário não conseguiu foi a autorização do Ibama, já que o instituto ainda não homologara sua reserva particular.
Não é o que diz Antônio Ganme, analista ambiental e coordenador da Divisão de Fiscalização de Fauna do Ibama. “Na verdade, todo o imbróglio começou porque percebemos que não havia nenhuma comprovação da origem destes animais”, afirma. Segundo ele, sequer nota fiscal foi apresentada – algo sério por natureza, ainda mais em se tratando de uma espécie exótica, como é o caso. O chimpanzé é originário da África, mas não se sabe como o primeiro casal veio parar em terras brasileiras. O mais provável, no entanto, é que o tráfico internacional seja a resposta.
“Mesmo sem a autorização do Ibama, decidi trazer os animais para São Paulo e entrei na Justiça com uma liminar pedindo o direito de guarda enquanto a homologação não saía”, diz Forte. A permissão foi concedida, mas logo depois o órgão ambiental informou ao juiz responsável pelo caso que a sede do empresário em Ubatuba não cumpria os requisitos básicos para receber os animais. Esta informação promoveu uma verdadeira reviravolta na história: a liminar foi retirada e Rubens deveria devolver os bichos para o Ibama, imediatamente.
Nova propriedade
Não satisfeito com a briga política e pessoal instaurada, o novo dono de Debby e Megh construiu uma área de lazer com mil metros quadrados dentro de uma propriedade de sua família em Ibiúna, situado na região metropolitana de São Paulo. Enquanto os bichos eram novamente transportados, Forte entrou na Justiça pela segunda vez, com um pedido para ser o fiel depositário de ambas. Mais uma vez, o Ibama recorreu do processo sob o argumento de que o novo local também não estava homologado.
Nesta época, o calendário já marcava os primeiros meses de 2007. Foi quando uma das desembargadoras que cuidavam do assunto bateu o martelo em favor da pior solução: introduzir os animais na natureza. Ou seja, na África. A decisão de vossa excelência acabou unindo Ibama, Rubens Forte e o Projeto GAP-Brasil, entidade não-governamental responsável por proteger os grandes primatas no País. “Rubens trouxe as bebês do Nordeste para o Sudeste adequadamente e se comprometeu a cumprir todos os princípios estipulados pelo GAP, como nunca usar os animais para fins comerciais. Não se pode jogá-las na vida selvagem”, diz Selma Mandruca, presidente do projeto.
A explicação é simples. Nascidas em cativeiro, as duas chimpanzés são absolutamente humanizadas, dormem em camas, escovam os dentes e inclusive brincam em balanços. “Os chimpanzés vivem em grupo, não há como soltá-las na natureza. Além de não estarem acostumadas, não seriam aceitas pelos pares. Iriam morrer rapidamente”, afirma Ganme, do Ibama. Rubens Forte costuma passear com Debby e Megh – que têm duas babás 24 horas por dia – pelos 120 mil metros quadrados de vegetação nativa cultivada na propriedade de Ibiúna. “Mas nunca fico longe delas, elas não saberiam o que fazer”, completa.
Agora, ao que parece, os antigos inimigos andam lado a lado. Pelo menos as três pontas da discussão concordam que levar os animais para as matas africanas é uma solução inviável. Sem caminhos para seguir depois da decisão da desembargadora, o GAP lembrou de um processo semelhante ocorrido em 2005, na Bahia. Na ocasião, a chimpanzé Suíça, de 23 anos, ficou muito doente após a morte de seu companheiro. Com a ajuda de biólogos e outros advogados, o promotor de Justiça do Ministério Público baiano Heron Santana entrou com um pedido de Habeas Corpus. A intenção era colocar o animal em uma reserva particular, única alternativa para salvá-lo. Há quatro anos ela era mantida no zoológico de Salvador.
Vistas do processo
“O juiz recebeu nosso pedido e iria analisá-lo. Mas a Suíça, infelizmente, faleceu no dia do julgamento. Vinte e quatro horas depois, ele deu a sentença favorável. O mundo inteiro está fazendo isso, há debates na Áustria e Espanha. O Brasil tem agora (com Debby e Megh) a grande oportunidade de dar um excelente exemplo para o planeta”, diz Heron. Com esta lembrança, os advogados de Rubens Forte foram acionados e prepararam um documento com base na proximidade genética entre os chimpanzés e os homens (cerca de 96%) que foi encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça.
O pedido de Habeas Corpus para as duas chimpanzés, ambas com quatro anos, foi indeferido em primeira instância. O empresário, assessorado pelo GAP, recorreu da sentença e conseguiu um novo julgamento. Na última semana, o ministro Herman Benjamim, da Segunda Turma do STJ, pediu vistas do processo para analisar melhor a situação. “Esta é uma semi-vitória”, vibra Selma Mandruca.
Até o Ibama já concorda que os animais devem ficar onde estão. “Mas deveria ser realizado um Termo de Ajuste de Conduta para isso. Por exemplo, uma sugestão seria que a família proprietária do santuário de Ibiúna praticasse algum tipo de compensação ambiental como penalidade pelo início equivocado”, diz Antônio Ganme. Seja como for, a luta continua pela sobrevivência de Debby e Megh, que deveriam ter nascido na natureza africana, e não em cativeiro brasileiro.
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