Atravessar fronteiras terrestres normalmente exige paciência e resignação. Via de regra enfrenta-se longas filas, muita papelada e morosidade. Assim, não é de se estranhar que eu tenha saído do escritório da aduana mal-humorado. Ao pisar em solo hondurenho, contudo, minha irritação dissipou-se. De cara, simpatizei com o país. Fui conquistado pela placa do táxi que peguei. Como qualquer matrícula de automóvel, ela trás os números que identificam o veículo, mas em cima dos numerais havia uma frase similar às que vemos nas placas de carros estadunidenses. A diferença é que os dizeres não são ufanistas como o “Sweet Home Alabama” ou o “Vacationland” de alguns estados norte-americanos. As placas em Honduras clamam: “Cuidemos los Bosques” (Tomemos conta das Florestas”).
Ana Leonor e eu não conseguimos ver muito naquele mesmo dia. Já eram mais de oito da noite quando a fronteira ficou para trás. O curto trajeto até a pequena cidade de Copán foi percorrido no escuro. Ao chegar no hotel, banho, jantar e cama. No dia seguinte fomos despertados por um buzinaço. Copán amanheceu de chuteiras. Parecia que a população inteira envergava camisas da seleção. Bandeiras nacionais tremulavam das janelas das casas, faixas de apoio ao escrete decoravam as ruas, crianças cantavam o hino do país, automóveis e motocicletas zanzavam pelo acanhado centro fazendo uma algazarra digna de Flamengo tri-campeão carioca. Parecia final de Copa do Mundo. De certa forma, para aquele cantinho centro-americano, era. Honduras jogaria naquela tarde em Porto Espanha contra Trindade e Tobago. O resultado era fundamental para sua sorte nas eliminatórias da Concacaf. Uma derrota significaria o fim do sonho de entrar em campo na África do Sul em 2010.
Havíamos programado a estada em Honduras para ser breve. O tempo de visitar as ruínas milenares de Copán, uma cidade maia com o mesmo nome da sua vizinha moderna, mas com cerca de 800 anos, cuja riqueza de ornamentos convenceu a Unesco a classificá-la, em 1980, como Patrimônio Mundial da Humanidade. Após o café (por sinal delicioso), prosseguimos para o complexo arqueológico. A Copán pré-colombiana era um dos principais centros urbanos do mundo maia. No século VIII chegou a abrigar cerca de 30 mil habitantes que viviam em uma urbe da qual já foram identificados 4.509 prédios. A Copán maia não é importante apenas por suas dimensões mas, sobretudo, pela qualidade artística das estelas (foto acima) e monumentos que adornam suas pirâmides. Suas obras de arte não possuem rival na América pré-hispânica. Hoje o grupo principal de edifícios da cidade maia foi restaurado e está aberto ao turismo.
As ruínas, compostas de pirâmides monumentais, campos de jogo de pelota e residências da nobreza, estão dentro de um pequeno parque natural que também é protegido e onde é possível ver macacos, capivaras e araras. A visitação inclui as ruínas em si, uma trilha ecológica e um belíssimo museu que alberga as melhores esculturas encontradas pelos arqueólogos.
Contratamos um guia local para interpretar o significado das ruínas. Aprendemos que os maias veneravam o milho – a palavra maia vem de maíz que significa milho no idioma indígena – e que plantavam abacate e algodão nas redondezas. Também adoravam alguns animais como a arara, os papagaios e os jacarés, que simbolizavam a fertilidade. Em Copán há uma profusão de esculturas desses animais, adornando as pirâmides e outros edifícios. Nas brechas que surgiam em meio a uma avalanche de perguntas que o guia fazia procurando aquilatar a opinião dos brasileiros sobre o futebol hondurenho, conseguimos descobrir que os maias se organizavam em cidades-estado, que tinham escrita, que eram versados em astronomia e que possuíam bons conhecimentos de arquitetura. Também gostavam de verter sangue. Eram dados a sacrifícios humanos para agradar os deuses da agricultura, da fertilidade e da guerra entre outras santidades.
Resolviam muitos conflitos por meio de um jogo de pelota, cujo objetivo era fazer uma bola passar por um aro usando apenas os pés, o dorso ou os cotovelos. Segundo nosso guia Obed Arodi Guerra, ao final da partida, o melhor jogador de um dos times era sacrificado aos deuses. Em diferentes épocas e de acordo com o objetivo do sacrifício, o infeliz poderia ser o capitão da equipe vencedora ou da perdedora.
Ao percorrer a trilha ecológica, encontramos uma patrulha militar. O comandante, um sargento de vinte e poucos anos, explicou sorridente: “aqui o policiamento e a fiscalização são feitos pelo exército hondurenho Protegemos a fauna, coibimos a caça e o corte de árvores.” Com efeito, Copán abriga um destacamento da 120ª Brigada de Infantaria do Exército de Honduras, cujo lema, pintado no muro do quartel, é “protegendo nossos bosques” (afinal de contas a ideia do Ministro Minc de colocar o Exército para proteger os Parques Nacionais brasileiros não é tão estapafúrdia assim!).
No final, já no museu, elogiei a relação harmônica dos maias com a natureza. Obed sorriu amarelo, pigarreou e, parecendo contrariado, negou minha afirmação. Consultou o relógio para calcular os minutos de que dispunha até o início do jogo de futebol e montou uma explicação que cabia no tempo com que contava. Ensinou que a civilização copânica utilizava muita cal e muita mão-de-obra para suas construções monumentais, o que os forçou a desmatar os vales para produzir carvão e plantar alimentos. O sucesso econômico de Copán teria causado um desmesurado crescimento populacional que aliado ao mau uso da terra e da água ocasionou o esgotamento dos recursos naturais e o assoreamento dos rios.
Os arqueólogos acreditam que o declínio de Copán se deu no século IX da era cristã, quando apesar do aumento dos sacrifícios aos respectivos deuses, prolongadas secas, epidemias e falta de comida teriam assolado a cidade. No século XVI, quando os espanhóis desembarcaram na América Central, a civilização copânica já tinha sucumbido vítima das suas próprias práticas de uso da terra. Não deixa de ser uma lição para pensar com mais cuidado algumas teorias atuais. Afinal, ao que parece, pelo menos essa comunidade tradicional não tinha uma relação sustentável com o meio ambiente.
Terminamos a visita às ruínas otimistas com o pouco que vimos de Honduras. Ali, ao que parece, a população aprendeu com os erros do passado. Apesar da visão breve e superficial que tivemos do país, saímos com a impressão de que o Governo tenta adequar o baixo orçamento nacional à necessidade de adotar práticas sustentáveis de uso do solo, emprega políticas simples de educação ambiental e utiliza seus recursos (pelo menos os militares) com inteligência.
Atravessamos uma cidade deserta para chegar ao hotel. A população inteira estava grudada na TV vendo o selecionado nacional. Ao final, a partida foi empate. Tudo indica que também aqui os hondurenhos não renegaram o que a História lhes ensinou. Após séculos de civilização maia aprenderam a temer jogos que resultam em vencedores e vencidos.
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