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Depois, todo mundo vira adivinho

A pior praga de Angra não é a que cai do céu. É a chuva de ilegalidade vinda de gabinetes onde se sabe que a Costa Verde não aguenta ocupação

6 de janeiro de 2010 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Reveillon 2010. Foto: PortoBay Experiences/Flickr.

Quem pôs os olhos no céu do Rio de Janeiro nesse réveillon viu mais do que fogos de artifício. Viu um raro espetáculo meteorológico.

Meia hora antes da pirotecnia oficial, as nuvens se ergarçaram sobre a cidade. Primeiro, destampando as praias, como se erguessem a cortina para o show da prefeitura. Depois, sobre a Zona Sul, uma lua cheia, que já ia alta, mas ainda não tinha aparecido, deu o ar de sua graça. Na hora certa, até a estátua do Redentor saiu da cerração no topo do Corcovado. À meia-noite em ponto, o Rio estava pronto para a festa. Tudo nos conformes, como previa o contrato dos poderes públicos municipais com a medium Adelaide Scritori, da Fundação Cacique Cobra Coral – “a luz que ilumina dos fracos e confunde os poderosos”, segundo sua própria definição. Trata-se de uma instituição tipicamente carioca, a Cobra Coral, embora Adelaide Scritori seja paranaense e preste serviços em outras praças, inclusive no exterior. Mas foi no Rio que ela se incorporou à administração local, pelo menos desde que o prefeito César Maia inaugurou em 1993 o primeiro de seus três mandatos debaixo de um temporal que derreteu morros e inundou bairros na cidade inteira.

Na ocasião, embalado pela campanha que acabara de derrubar o presidente Fernando Collor, o sociólogo Betinho propôs o impeachment do prefeito. E Cesar Maia nunca mais se descuidou do convênio com a fundação, para fins de prevenção meteorológica.

No ano passado, quando o Eduardo Paes tomou posse na prefeitura, o contrato com a Cobra Coral veio à tona como mais uma excentricidade do antecessor, desentranhada de suas contas pelas lupas da troca de comando no município. Mas nesse ponto a mudança durou pouco. O sucessor renovou o acordo com a Cobra Coral em 22 de janeiro. E, em seu réveillon de estréia, a medium Adelaide Scritori veio expressamente de Buenos Aires para encorpar o palanque das autoridades.

Deve-se admitir que ela brilhou na festa, fabricando tempo bom sob medida para os fogos. Dois dias depois, meteorólogos de extração mais científica iriam atestar que ocorrera naquela noite um fenômeno raro, instalando na hora certa sistema de baixa pressão sobre a cidade e conjurando ventos que viraram as chuvas para o sul. Ou seja, para os lados da cidade de Angra dos Reis e para a Ilha Grande, onde a mansa praia do Bananal, que as notícias do desastre continuam a chamar de “Paraíso”, amanheceu sob 20 metros de lama e pedra.

Aí o réveillon já estava longe, superado por mais de 50 mortes. E nos jornais, em lugar das incertezas meteorológiocas, a catástrofe em Angra dos Reis atravancou os jornais com certezas vindas de todos os lados. Pelo visto, todo mundo sabia que o litoral apelidado pelo marketing turístico de Costa Verde, revolvido há pelo menos 20 anos pela febre de grilagens que contagiou pobres e ricos, trocou a mata de seus morros quase a prumo pela favelização gritante e privatizando suas enseadas selvagens por condomínios particulares. Tudo igualitariamente ilegal.

Morro da Carioca após o deslizamento de terra que deixou 21 vítimas. Foto: Rafael Ribeiro (SAPE).

Agora que, mais uma vez, agora com mais eloqüencia, o modelo de ocupação predatória adotado na Costa Verde disse a que veio, não faltaram autoridades para reconhecer que, carcomido como estava, aquilo lá não poderia dar certo. Geólogos como a secretária estadual de Meio Ambiente, Marilene Ramos, explicaram que, naquele trecho da Serra do Mar, toda encosta mais íngreme tende um dia a descer rumo ao mar, decompondo-se a rocha íngreme em “solo poroso e instável”. O prefeito de Angra, Tuca Jordão, lembrou-se de que os desabamentos haviam começado três dias antes do réveillon. Mas, pelo visto, nada se fez para evitar as piores conseqüências, em nome de não assustar os turistas no auge da temporada.

E até o governador Sergio Cabral, quando deu por encerrado seu feriadão de fim de ano em Mangaratiba – ou seja, logo ali ao lado – declarou, sobre o fato consumado, que não se “pode brincar com o solo”, falando de demolir até 1500 construções irregulares. Se o critério for mesmo esse, até a casa de praia de Cabral está a perigo, pois se instala num condomínio que ocupou terrenos da União por onde passava a ferrovia EF 479 para Angra dos Reis que, apesar de invadida, ainda consta do Plano Viário Nacional.

Dois anos atrás, a Operação Carta Marcada, um desses furacões moralizadores da administração pública que dão e passam, andou farejando rastros de corrupção política na grilagem que está fazendo o possível para aniquilar o patrimônio natural das oito baías, duas mil praias e 365 ilhas que fizeram a fama de Angra. Da noite para o dia, brotaram na Costa Verde 29 mandados de prisão contra secretários municipais, empreiteiros, funcionários da Fundação Estadual do Meio Ambiente e políticos. Ou seja, toda a quadrilha local que traficava com licenças ambientais feitas sob medida para legalizar qualquer espelunca.

Depois, assim como veio a Carta Marcada sumiu nos trâmites legais. E não se falou mais disso. Mas só pode ser de ensaios como esse que vêm a perfeita coordenação das autoridades, quando se trata de avaliar os estragos das chuvas em Angra. Ninguém precisa de medium para adivinhar o que qualquer um pode enxergar a olho nu, só de trafegar pela Rio-Santos. Quase toda a paisagem às margens da rodovia é um outdoor contínuo do que nunca se deveria fazer com um lugar daqueles.

O problema é que há governos para cumprir religiosamente seus contratos com a Fundação Cacique Coral. Mas não para levar a sério as licenças ambientais que eles mesmos produzem e assinam. E as licenças ambientais existem exatamente para prevenir desgraças como a do réveillon.

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