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Um código com 111 anos de desconversa

Como nos bons tempos das sesmarias coloniais, a política brasileira dispensa argumentos e critérios, porque nasceu para dar terras a quem pegar primeiro, de mão beijada.

28 de outubro de 2009 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A reforma do Código Florestal é como estouro de boiada. Depois que dispara, não se desvia mais dos argumentos que lhe surjam pela frente. Passa reto por cima deles, deixando para trás um rastro de avisos pisoteados.

Mas isso, no Brasil, vem do governo Epitácio Pessoa, na década de 1920. O que o debate tem de novo é a manada de e-mails desembestados, para mostrar que, mais uma vez, como nos bons tempos das sesmarias coloniais, a política brasileira dispensa argumentos e critérios, porque nasceu para dar terras a quem pegar primeiro, de mão beijada.

Pode haver sinal mais claro de que, lá em cima, no Planalto Central que nos governo, a decisão já tomou o rumo dos assuntos que o país resolve sem discutir do que um e-mail dizendo que “a reserva legal só serve para trazer produtores rurais para a ilegalidade”?

O que se pode dizer contra isso além de “é sim”? Qualquer lei serve, em princípio, para botar na ilegalidade – e, eventualmente, na cadeia – quem resolva enfrentá-la no peito e na raça. Traficante de morro sabe disso. E, no caso, em favor do traficante se poderia invocar pelo menos o atenuante de que há menos interesses públicos e direitos constitucionais feridos num cigarro de maconha aceso do que numa floresta queimando.

Mas a campanha contra o Código não é um movimento de idéias, mas uma nova reiteração dos fatos consumados. À falta de um debate que possa levar a sério, o país na prática já enterrou o Código Florestal nos conchavos de Brasília. E agora vale tudo para apressar o cortejo. Vale, por exemplo, dizer: “Não é vocação do produtor rural manejar floresta legal”. Ah! Não é? Então o Código Florestal parece feito sob medida para o produtor rural. A mata em em geral cuida razoavelmente bem de si mesma. Sobretudo se o agricultor não quiser ajudar com machado e fogo. Como as leis brasileiras esclarecem desde os primeiros esboços de legislação ambiental por José Bonifácio, manejar a floresta não é uma prerrogativa da mata, mas de quem estiver disposto a aproveitar seus recursos sem acabar com ela. Se o agricultor preferir não se exaurir com manejo florestal, melhor para a floresta. Basta esquecê-la em seu lugar, que dificilmente ela se queixará de abandono. E, para isso, o Código não precisa de poda radical.

Assim como não há motivo para considerar injusto “exigir de qualquer pessoa 20% de seu tempo para ser dedicado a qualquer coisa que ele não queria fazer”. E o que tem o Código a ver os 20% do tempo de seja lá quem for?

As leis que forçam as pessoas a gastarem uma parte de suas vidas para fazer o que não querem impõem, até onde a vista alcança, o voto obrigatório e serviço militar obrigatório. Ou, por tabela, os impostos. O coitado do Código não vai tão longe. Suas percentagens não se referem ao tempo do agricultor, e sim ao espaço de preservação nas propriedades rurais. Ali, definem o que o dono não pode fazer e, de uns tempos para cá, o que ele pode fazer, se quiser. Não querendo, ele pode usar legalmente esses 20, 35% ou 80% de reserva para não fazer nada. São lugares de descanso, para a terra e para o homem. Uma velha idéia que aqui no Brasil não pegou, como dizia no século XIX o francês Charles Ribeyrolles ao pressentir a ruína da escravidão no Vale do Paraíba.

Enquanto a terra e o homem descansam, a mata trabalhará de graça para eles, cuidando antes de mais nada da água, o principal insumo da agricultura desde que o mundo começou a trocar, lá vão quase dez mil anos, florestas por terras cultivadas, plantações por pastagens e campos exaustos por desertos, freqüentemente nessa ordem.

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