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A ilha do tesouro em versão 2009

Aero, uma ilha no sul da Dinamarca que parou no século XIX, está disparando para chegar à frente a um estilo de vida equilibrada para o século XXI. É modesta, mas dá inveja.

5 de agosto de 2009 · 15 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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Do mar, a primeira coisa que se avista de Aeroskobing é sua monumental modéstia. Ela desfila majestosamente ao lado do ferry que se aproxima do porto e, como se espera dos manifestos arquitetônicos de uma civilização, surpreende pelo tamanho. Mas nada tem de grande. Ao contrário, é tão pequena que chama a atenção.

De longe, parece uma ilusão de ótica entre o barco e o horizonte. Como se um erro de perspectiva encolhesse as casas enfileiradas na praia de Vestre Strandjev, tornando-as menores que as construções mais distantes, no fundo da baía. E, até a hora do desermarque, permanece sem explicação.

Só depois de dar tempo aos olhos e à cabeça para se ajustarem à paisagem singular desta ilha no sul da Dinamarca, enxerga-se o que elas de fato são. Trata-de casas minúsculas, apesar de habitáveis. Com quatro ou seis metros quadrados de área construída. Reduzem-se a uma porta e três janelas. Cabem num só cômodo, que a luz do mar atravessa de lado a lado, sem esbarrar em paredes internas.

A miragem que perturba o senso de escala vem do acabamento. Elas foram construídas como se fossem grandes, com tábuas pintadas em cores vivas, batentes brancos, jardins compactos delimitados por cercas de madeira que mal as separam do campo florido à beira-mar. No verão, quem passa por elas em tardes de domingo vê famílias inteiras, em volta da mesa, usando seus “palácios de praia”, que é como o guia de Aeroskobing chama essas cabanas.

Ilha do tesouro

Elas dispensam banheiro, cozinha e quarto. Algumas têm camas ao redor das mesas. Nada, nem cortina, isola seus donos da praia quase selvagem, a dois ou três quilômetros da cidade. Não são assim por boniteza, mas por precisão. Era o que dava no orçamento de seus construtores, décadas atrás, no começo do século passado, quando Aeroskobing e outros portos da ilha eram pobres.

Acabavam então de ser desertados pela navegação comercial, quando os navios à vela deixaram de ligar a Dinamarca ao resto da Europa pelas rotas milenares do Báltico. Congelada pela calmaria econômica, Aeroskobing foi ficando para trás. E por tanto tempo que, em meados do século XX, descobriu que tinha nas mãos um tesouro tesouro arquitetônico, valorizado pelo atraso no canto mais remoto do arquipélago de Funes.

Até esse ponto, Aeroskobing é uma obra-prima da fatalidade. Mas, daí para a frente, o que sua população vem fazendo com esse trunfo involuntário dos grandes ciclos econômicos é uma história de progresso atestada por vários premios internacionais de meio ambiente, herança cultural e qualidade de vida, como o Europa Nostra.

Terra firme

Basta pisar em solo para sentir que ali o passado e o futuro acertaram o passo com a precisão dos grandes coreógrafos. O porte dos veleiros atracados no ancoradouro histórico não deixa o guia de viagem mentir. E, na dúvida, pode-se conferir o resultado pela construção de alvenaria encarapitada no molhe de pedra. É a cozinha coletiva. Foi feita no século XVIII em função da lei que proibia acender fogo nas embarcações de madeira ancoradas no porto. E virou churrasqueira sem perder um traço sequer da edificação original.

Aerosking se adaptou ao presente nas últimas décadas através da receita futurística de evitar a qualquer custo recorrer a demolições. O armazém de milho se converteu no cinema Andelen sem mudar de características. A delegacia policial, em frente ao porto, tem roseiras subindo na fachada.

A seu lado, o Rogeri, que tradicionalmente vende comida sem talher nem prato, fornece agora a iatistas endinheirados as mesmas combinações imutáveis de arenque defumado, camarão seco, salmão e salada de batata que sempre serviu a marinheiros. As ruas conservam intato o traçado medieval de pedras irregulares que empurra os automóveis para seu devido lugar – andando o mais devagar possível, nos calcanhares dos pedestres.

É possível reconhecer casa por casa num mapa urbano de 1677, mesmo se cada vez as velhas residências viram museus, lojas, restaurantes ou hotéis. Pela fórmula universalmente adotada em Aeroskobing – “baixo custo, uso flexível, integração com a rua, harmonia entre o público e o privado” – nenhum esforço de atualização exigiu reformas grandiosas.

Os moradores se afeiçoaram a uma arquitetura secularmente funcional, definida numa época em que os construtores sabiam que “as casas sobrevivem a seus donos” – e, portanto, a todos os seus usos e costumes. As residências têm janelas baixas abertas para as ruas sem calçadas. Devassadas, passaram a usar bibelôs e outros detalhes da decoração para enfeitar os parapeitos.

Plano urbanístico

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Quem não resiste à tentação de espiar a intimidade alheia enxerga, do outro lado, o jardim interno, que também é parte integral daquele estilo de vida. A sala é vazada nas casas urbanas como nas suas miniaturas de praia. Térreas, com quartos nas mansardas, elas foram geralmente construídos antes do século XIX e restauradas com tanto esmero que, em fotografias da década de 1920, parecem mais modernas do que são atualmente.

Obra de 500 cidadãos que se associaram para resolver o problema sem esperar por nenhum governo, o plano de conservação de Aeroskobing zela por cada pedra do patrimônio arquitetônico da cidade. Regula tudo nas casas. O tipo de tinta da fachada, a escolha dos materiais, as plantas usadas no ajardinamento e até o desaprumo das paredes tortas, que o tempo quis assim e os proprietários respeitam.

Ninguém mexe em nada sem consultar o projeto geral da cidade. Trata-se, por sinal, de uma legítima “conquista democrática”. Foi negociado ponto por ponto. A maioria mora assim porque quer. Logo, obedece aos estatutos da convivência exemplar como um requisito da liberdade. Euem acha que o excesso de regulamento oprime não conhece, provavelmente, a ditadura da anarquia nas favelas cariocas.

Aeroskobing parece estar em paz com suas posturas. As bicicletas dormem encostadas fora da porta. Os portões passam o dia entreabertos. As mesas ficam postas ao ar livre. Meia dúzia de quilômetros rumo ao interior da ilha mostra que as estradas costeiam fazendas que ainda põem no acostamento suas frutas, batatas e geléias, sem a menor vigilância.

Não adianta esperar que alguém venha atendê-lo. O freguês simplesmente apanha o que quer no balcão rústico, calcula o preço e joga as moedas na caixa do correio. E isso acontece muito, porque a ilha de Aero, com 90 quilômetros quadrados, ou 30 quilômetros de extensão, tem inumeráveis produtos agrícolas para pregar o selo de “orgânico”, desde a carneiros a salames, biscoitos,  condimentos, xampus, sabonetes e até tecidos artesanais. 

Novidades no ar

Há mais de 30 anos aqueles campos não vêem uma gota de agrotóxicos ou fertilizantes. Os pastos são floridos. Nas trilhas que atravessam sem a menor cerimônia as cercas das propriedades rurais passeia-se entre vacas, colhendo morangos silvestres, sempre com o mar de um lado e os bosques de outro. A terra habitada há 10 mil anos tem ar de que tudo ali está começando agora. Ou, pelo menos,  começando de novo.

Isso não quer dizer que ela parou outra vez no tempo. E sim que está andando numa outra direção, que não é a do desenvolvimento econômico retardatário e bruto que se arvorou em modelo universal no século passado. Desde 1997, as cidades de Aero disputam com o resto do mundo desenvolvido quem chega primeiro no século XXI a uma economia avançada que se sustente  exclusivamente em fontes alternativas de energia.

Os sinais dessa proposta se espelham hoje à beira dos 36 quilômetros de picadas que atravessam a ilha e se prolongam por mais 170 quilômetros no arquipélago de Funem. A cidade de Marstal, que já foi o maior porto de Aero, com 350 cargueiros a vela, tem mais de 18 mil metros quadrados de placas solares, que cobrem 30% de sua calefação.

Aeroskobing se contenta por enquanto com cinco mil metros quadrados. Mas três turbinas eólicas de dois megawatts, erguidas por subscrição popular, geram 55% da eletricidade que a ilha consome. Cinco geradores menores suprem o resto. Suaas formas se encaixaram tão bem no cenário bucólico que são carneiros os encarregados de manter o capim aparado sob as células fotoelétricas. E as trilhas que margeiam o campo de aviação são as mais indicadas de Aero para a observação de pássaros.

Volta-se de lá com a certeza de que há mais coisas ultimamente entre o céu e a terra do que supõem os autores do PAC no governo Lula. Mas será que um dia o século XXI ainda vai chegar ao Brasil?

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