Em 2006 me pediram para fazer um estudo sobre a proposta da Estrada Interoceânica Sul, no setor amazônico. Visitei a zona de influência que abrange grande parte dos departamentos peruanos de Madre de Dios, Cusco e Puno, e revisei os estudos de viabilidade e de impacto ambiental disponíveis. Estes dois, como é habitual, não estavam concluídos apesar de que a obra já havia se iniciado.
Em fevereiro deste ano, ou seja, seis anos depois, visitei novamente a zona desta estrada que está há três anos em operação. Como era esperado, nenhuma das recomendações feitas deste trabalho foi ao menos considerada. Pior ainda foi constatar que, apesar do meu estudo ter sido chamado de exageradamente pessimista, minhas previsões foram superadas pela triste realidade.
Além da avaliação do impacto ambiental não estar terminada, no estudo mencionado foi demonstrado que os avanços propostos tinham qualidade discutível, baseados em informações secundárias e em consultas públicas irrelevantes. Os promotores da obra, governo e empresários, pularam os requisitos técnicos usando a propaganda de sempre, de que estradas equivalem a desenvolvimento.
Neste caso, a nova estrada criaria um intenso fluxo comercial com o Brasil, em parte decorrente do seu uso para “evacuar a soja do centro-oeste para a Ásia através dos portos peruanos do Pacífico”. No estudo, considerava-se que o eventual benefício econômico desse desenvolvimento seria anulado pelos custos dos impactos ambientais e sociais negativos. Entre outros, foram mencionados o desmatamento e a degradação da floresta, o aumento do trânsito e especulação de terras, a invasão de unidades de conservação e de territórios indígenas, a perda de biodiversidade, a destruição dos recursos hidrobiológicos, a expansão do cultivo de folhas de coca e do tráfico de drogas, crescimento da mineração ilegal de ouro e a deterioração das condições propícias ao ecoturismo que podia prosperar na região.
Desastres anunciados
Como foi dito, as advertências e recomendações não serviram de nada. Em vez de criar um amplo programa de investimentos para regularizar a propriedade rural, estimular o desenvolvimento agropecuário, racionalizar a exploração florestal e a mineração, ampliar as facilidades para a educação e saúde e garantir a intangibilidade das terras indígenas. Se assim fosse, a nova estrada promoveria um desenvolvimento sustentável. Entretanto, o governo se limitou a aceitar a pressão da Corporação Andina de Fomento, uma das agências financiadoras, para desenvolver um ridiculamente pequeno projeto de gestão ambiental, cujos mínimos recursos foram gastos mais em Lima do que na região. Ou seja, que, além do substancial investimento na estrada, não houve outros investimentos.
Então, tudo o que foi previsto aconteceu e continua acontecendo. Em primeiro lugar, a estrada não aumentou o comércio com o Brasil. Três horas de viagem entre Iñapari, na fronteira, e Puerto Maldonado, não permite ver nem um caminhão ou ônibus brasileiro. Apenas se vêm, nesta rota, mototáxis e poucos veículos locais de passageiros. De noite, são mais frequentes os caminhões com troncos que carregam madeira quase sempre ilegalmente extraída dos vales dos rios Tahuamanu e Las Piedras, abertos para a exploração graças à Interoceânica. Pior, parece que, aproveitando-se do pouco trânsito, ocasionalmente podem ver-se pequenos aviões que rapidamente aterrissam e decolam carregados de cocaína com destino ao Brasil.
Na parte entre Puerto Maldonado até Los Andes, no entanto, existe um trânsito intenso. São caminhões que trazem equipamento e suprimento para a exploração ilegal de ouro e levam de volta produtos agrícolas e muita madeira.
Há também um intenso movimento de passageiros, especialmente para Madre de Dios. Na maioria são camponeses pobres de Cusco e Puno que descem para procurar ouro e que entrarão, nas piores condições imagináveis, na mineração ilegal. Logo decepcionados, se estabelecem na região, tirando os ocupantes originais das terras, os índios ou ribeirinhos.
O crescimento enorme e caótico da exploração ilegal de ouro é uma das piores consequências da nova estrada, porque barateou os custos e facilitou bastante sua expansão. Desde 2006 até hoje a área ocupada e degradada por esta atividade, e também o número de garimpeiros e suas famílias, quadruplicou e continua crescendo. As desesperadas e socialmente caras tentativas esporádicas do governo anterior e do atual para controlar o caos poderiam ter feito sucesso, caso há alguns anos fossem tomadas medidas preventivas que tantos especialistas recomendaram.
Hoje é tarde já que os garimpeiros são uma massa enorme e poderosa, habilmente manipulada por patrões ricos e politicamente influentes que, além disso, usam métodos mafiosos para intimidar os que se opõem as suas decisões. Muitos estão associados aos narcotraficantes ou são os próprios, movendo dinheiro de uma atividade para outra e para outros negócios que permitem a lavagem do dinheiro.
Boa parte do dinheiro arrecadado pelo tráfico de drogas, pela mineração informal e pela corrupção, é reinvestido localmente dando uma deformada impressão de desenvolvimento. Dessa forma, ao longo da Interoceânica, podem-se observar enormes áreas desmatadas cobertas de pastagem sem gado. Apenas servem para marcar possessão e lavar dinheiro sujo. Do mesmo jeito, em Madre de Dios como na floresta, é óbvio o vínculo entre estes negócios ilegais e a também ilegal exploração florestal que, como a mineração, está penetrando territórios indígenas e Unidades de Conservação, despejando os últimos grupos de índios isolados.
A corrupção e a ineptidão têm permitido a sobreposição de concessões florestais sobre os direitos ancestrais de castanheiros e, claro, tampouco os garimpeiros de ouro os respeitam, sejam castanheiros ou agricultores locais. Estes problemas seriam muito fáceis de evitar se, antes de terminar a estrada, tivessem regularizado a situação da propriedade das terras, demarcando as propriedades e garantindo os direitos adquiridos.
Alguns dirão “Puerto Maldonado cresceu e melhorou”. É verdade que essa cidade aumentou cinco vezes sua população em uma década, e parece estar melhor do que antes. Foi o dinheiro ilegal que promoveu um boom da construção civil. A cidade está pavimentada e tem até semáforos eletrônicos. Está repleta de negócios com muito movimento; tem bancos, serviço telefônico e hotéis razoáveis, etc. Também tem muitos bordéis, boates e bares. Mas isso é só uma ilusão, porque os serviços públicos são insuficientes, inclusive os de água potável e saneamento.
Por isso Madre de Dios bateu recordes nacionais de incidência de doenças como a AIDS. Por outro lado, a absoluta falta de previsão sobre desenvolvimento urbano provocou invasões por todas as partes, dessas com paredes de plástico e tetos de palma ou papelão. Nem a Força Aérea do Peru se livrou de uma enorme invasão que atrapalha a futura expansão do aeroporto. Acontece que a cidade explodiu de crescimento para todos os lados como consequência da migração sem controle. E todo o mundo sabia que isso aconteceria… menos as autoridades.
O preço da natureza
As atividades econômicas ilegais e também as legais no espaço afetado pela estrada cobraram um preço caro à maravilhosa natureza de Madre de Dios, cuja capital se autodeclara a Capital Nacional da Biodiversidade, e que em nenhum momento tentou ser um exemplo de desenvolvimento sustentável. Embora não existam inventários recentes, é evidente que o desmatamento aumentou drasticamente desde que o tapete de asfalto e suas pontes estão disponíveis.
A atividade de mineração não respeita limites e se expandiu sobre os rios, através de dragas e outras embarcações, e em florestas de qualquer tipo. Além disso, esta atividade afeta uma área muito maior que a desmatada. Seu principal impacto é a contaminação dos rios pela sedimentação e pelo uso indiscriminado de mercúrio, sem nenhum cuidado. Já foi demonstrado que os níveis de mercúrio nos peixes são elevadíssimos e até a população, especialmente os visitantes, evitam consumi-los.
O impacto combinado da desestruturação dos rios, sua contaminação e a sobrepesca fizeram que fosse difícil encontrar nos restaurantes locais um peixe que não venha da piscicultura local, diminutos e sem sabor.
O desmatamento também é importante como consequência da expansão agropecuária, inclusive da folha de coca ilegal na parte mais alta. Mas o impacto principal é a chamada degradação da floresta, que é mais difícil de ver e que se produz pela exploração florestal legal e ilegal, a caça e a extração seletiva, ocupando enormes extensões do departamento de Madre de Dios. Como era de se esperar, a exploração ilegal penetra nas comunidades nativas, nas reservas comunitárias (Amarakaeri), e, recentemente, foi detectada inclusive na Reserva Nacional de Tambopata. Madeireiros sem escrúpulos têm promovido, até agora sem sucesso, a construção de uma estrada entre Iñapari e Puerto Esperanza, atravessando terras indígenas e o Parque Nacional Alto Purús. Na realidade, vários caminhos ilegais estão sendo construídos em todo o departamento a partir da Interoceânica.
A estrada Interoceânica, por todo o exposto, está ameaçando seriamente o ecoturismo. Esta atividade econômica chegou a proporções consideráveis e exemplares em Madre de Dios, com várias dezenas de empresas com sucesso nos principais rios, especialmente no rio Tambopata, que acostumam trabalhar diretamente com a sociedade local. Trata-se de um modelo excelente de economia verde. Mas, a destruição da floresta e das paisagens está cada dia mais perto destes negócios. Os turistas não podem evitar ver, do avião, carro ou barco, os desastres causados pelo garimpo ilegal ou observar as invasões de terra e a pobreza. Eles já não podem nem querer comer peixe; e veem as árvores sendo derrubadas e substituídas por pastagens sem uso, depois de passar fogo sobre seus restos. Os turistas apenas conseguem uma visão do que era a floresta nos lugares próximos das pousadas ou das unidades de conservação. O ecoturismo está em perigo.
O quê fazer?
O governo do Peru e o de Madre de Dios já perderam tempo demais para tomar medidas sérias. O problema fundamental continua sendo o mesmo de seis anos atrás e as soluções propostas no passado continuam válidas. Só que agora custarão bem mais caro. De nada servem as ações contra os garimpeiros ilegais ou para pôr ordem na exploração madeireira se não existem recursos suficientes para dar-lhes continuidade e executá-las como deve ser.
Em paralelo à construção de uma estrada que custou ao Peru cerca de dois bilhões de dólares – é preciso investir um valor proporcional para criar boas condições de desenvolvimento regional: ordenar o território e sua ocupação, capacitar os garimpeiros, agricultores e madeireiros, oferecer-lhes crédito e apoio para realizar um trabalho legal e rentável, criar capacidades institucionais locais para dirigir processos, etc. Foi isso que fez o vizinho estado brasileiro do Acre, quando decidiu se comunicar através de uma estrada com a cidade de Cruzeiro do Sul. Investiu mais dinheiro nessas ações do que na construção da estrada. E claro, foi recompensado, com um desenvolvimento que, embora não perfeito devido aos movimentos da política local, é incomparavelmente daquele em Madre de Dios.
O departamento de Madre de Dios está fazendo um século de existência política neste ano. Neste departamento, excluindo os índios, não há mais nativos. Dos seus habitantes, 90% ou mais vêm de Puno, Cusco ou de outros lugares. Falam quéchua, aimará ou idiomas de países tão longínquos como China e Coreia. Não são amigos da floresta, mas a veem como obstáculo. Tomara que o centenário tão celebrado permita persuadir, através das oportunidades que gerariam investimentos como os citados, esses novos cidadãos de Madre de Dios a construir um desenvolvimento que seja desejável para todos.
Marc J. Dourojeanni. 2006. Estudo de caso sobre a Estrada Interoceânica Sul na Amazônia Sul do Peru.. Bank Information Center, Conservation International, Derecho Ambiente y Recursos Naturales y ProNaturaleza, Lima, 103p.
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