Em 2006, participei da minha primeira operação envolvendo desmatamento em terras indígenas, e a primeira em um lugar remoto. Foi na Terra Indígena Kayapó, distante um dia inteiro, de Tucumã (Pará), por sua vez, a quase 1.000 km de Belém. Lá, na fronteira dessas terras, fazendas estariam sendo abertas na mata.
Nossa equipe tinha cerca de 15 policiais federais, juntamente com integrantes da Funai, e dois indígenas, sendo um bastante jovem, que se denominava “guerreiro”, e outro que possuía um cargo mais alto na hierarquia Kayapó. Assim, minha primeira descoberta foi que a hierarquia dos Kayapó não se resume a cacique e pajé, seguida dos demais índios. Segundo um dos colegas da FUNAI, esse velho índio teria cerca de 80 anos, ainda que fosse mais forte e resistente nas caminhadas pela mata do que boa parte dos policiais ali presentes — eu incluso, mesmo com menos de 30 anos, na época.
Acampamos junto ao barraco abandonado de um posseiro que tinha desistido de sua área (não sei dizer o porquê, mas posteriormente explico uma hipótese), e, a partir desse ponto, fazíamos incursões às áreas onde haveriam novas aberturas, queimadas e formação de pastagem. Os indígenas se ocupavam, quando não estavam nos guiando, em debater com índios de outras aldeias, através de um rádio amador que tinham trazido. Um deles traduzia para mim as conversas, que giravam em torno de nossa presença na área, sendo alguns indígenas, e representantes de algumas aldeias, favoráveis e outros radicalmente contra terem trazido a Polícia Federal ao local. Ou seja, seu envolvimento político ia muito além da aldeia, atingindo, de fato, o conceito de nação indígena.
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Percebi desse jeito que havia um conflito entre eles: havia os contrários à nossa presença, os quais temiam, após a expulsão de posseiros (consensual entre todos), que acabássemos fechando um garimpo situado junto a uma aldeia próxima. Essa aldeia estava em acordo com os garimpeiros, cobrava impostos sobre o ouro extraído e controlava o fluxo de pessoas e de armas (sim, um dos posseiros presos possuía um papel escrito e assinado por um líder indígena autorizando-o a portar arma de fogo). Quer dizer, aqueles indígenas achavam vantajoso manter o garimpo e lucravam com ele. Temiam, com toda razão, que a Polícia Federal pudesse, literalmente, fechar sua mina de ouro.
Concentramo-nos na retirada dos posseiros. Um sobrevoo de helicóptero mostrou que o garimpo era por demais povoado para que pudesse ser enfrentado por uma equipe com o tamanho e recursos da nossa. Uma operação específica deveria ser planejada para aquele fim. O piloto do helicóptero chegou a relatar um disparo para o alto, indicando que garimpeiros e índios estariam dispostos ao enfrentamento. Enquanto isso, seguíamos nas estradas abertas no interior da reserva até as casas e barracos dos posseiros, que tentavam abrir novas pastagens.
Em uma dessas incursões, o velho índio, chamado Piu-Djô, nos abandonou. Por motivos desconhecidos, se embrenhou na mata enquanto fazíamos nosso trabalho. Ele tinha consigo uma borduna, uma espécie de cassetete aparentemente rústico, porém de uma arquitetura letal em um combate. Sua empunhadura é estreita e leve como um taco de beisebol, enquanto a extremidade é pesada, feita para derrubar o oponente. O detalhe é a ponta: ela não é plana, termina em um cone pontudo. Sua função, contou Piu-Djô, é golpear e perfurar o crânio do inimigo, depois do impacto na cabeça que inevitavelmente o levará ao chão. Na guerra, menos um para se preocupar.
Perguntei sobre outras armas ou castigos que impunham aos oponentes, inclusive aos brancos. Ele me disse que havia casos em que o cidadão era amarrado com uma fogueira sob os pés. “Pequena”, para fazer seu trabalho com lentidão, fez questão de ressaltar. Pareceu história que velho conta. Não descartei ser verídica, embora esses indígenas tenham se mostrado pacíficos nas oportunidades em que os encontrei.
Pois bem, já voltávamos dessa trilha, escoltando para fora da Terra Indígena um posseiro desalojado. Ele ia na frente, de moto, e nós atrás, na viatura 4×4. A velocidade era lenta devido à precariedade da estrada.
Qual não foi a nossa surpresa quando vimos o velho índio, de borduna à mão, de tocaia atrás de uma árvore! Gritamos e isso o fez relaxar, deixando o posseiro passar com sua moto. Ficou a forte impressão de que, não fosse a nossa intervenção, aquele posseiro teria sido abatido com um golpe certeiro.
O garimpo só foi desmantelado em novembro de 2010, mas persistem outros pequenos naquela e em outras terras indígenas, pois, como pude notar, é do interesse deles ter essa fonte de renda. Pelas minhas informações, as tentativas de abrir fazendas que motivaram aquela operação foram freadas. O investimento na formação de pastagens é alto e o risco da perda da posse da terra fez com que os posseiros procurassem outros lugares, menos conflituosos. Talvez por isso as terras indígenas, ao contrário de outras unidades de conservação, tenham um índice menor de desmatamento. Quer dizer, “desmatamento” no sentido de corte raso, e não no sentido de retirada de madeira nobre.
Conversando com o velho índio, durante a operação, sondei por curiosidade:
‒ Piu-Djô, tem mogno ainda aqui?
‒ Não…
‒ Venderam tudo já?
‒ Já, faz tempo.
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