Esta pergunta não é feita apenas pelo leigo, mas também por estudantes de Direito. Afinal, muita coisa que foi assinada, não há 20, mas há 40 anos, em Estocolmo, ainda não foi cumprida. E a ausência de sanções aos países que descumprem tratados e convenções internacionais a que aderiram causa perplexidade.
A decisão de um Estado de integrar uma organização internacional (caso da ONU ou da OEA), de assinar uma declaração ou ratificar um tratado ou convenção, resulta de um processo interno fixado por regras a que se impõe o próprio Estado. Estas regras, nas democracias, são previamente estabelecidas e aceitas pela população e a elas (normas de Direito Constitucional) os Estados devem obediência irrestrita. O desenvolvimento desta concepção política, de supremacia da ordem constitucional, alcança tal grau de sofisticação a ponto de o Estado (pessoa jurídica de direito público interno) responder em juízo, em tribunais que integram a sua própria estrutura de poder. Na verdade, esta hipótese é corriqueira e existe desde que a civilização ocidental superou a tese “the king can do no wrong”. Estes elementos conformam o próprio conceito de soberania nacional, que pretende representar a “vontade popular”.
A sensação de vazio que se tem, ao final da Rio + 20 não decorre de alguma falha na aplicação do direito internacional. Sob este aspecto, os Estados subscritores do documento intitulado “O futuro que queremos” não cometeram nenhuma heresia jurídica.
Ocorre, no entanto, que esse documento está sendo elogiado pela diplomacia brasileira na razão direta das críticas feitas pela sociedade civil. E por que isto acontece?
Ora, é evidente que os interesses econômicos cuja voz é personificada pelos Estados que conduziram as negociações da Rio + 20 foram bem vitoriosos. Tanto que já trabalham na construção de raciocínios e teses visando a demonstrar o grande sucesso da conferência e o ridículo das críticas dos “ambientalistas”.
Dilma Roussef encerra a Rio + 20 deixando claro que o Brasil (da mesma forma que a China, a Rússia ou a Índia) tem hoje cacife suficiente para “corrigir” a rota do Direito Internacional em prol de seus planos de aceleração do crescimento. Esse cacife, que fique claro, está longe de ser uma suposta política ambiental bem sucedida.
Os brasileiros sabem muito bem que as mudanças recentes no Direito Ambiental Brasileiro demonstram a incapacidade da Administração Federal de exigir o cumprimento de padrões éticos e de responsabilidade socioambiental pelos agentes da ordem econômica. Estão aí a edição de uma nova Lei de Biossegurança, destinada a esvaziar o poder do Ministério do Meio Ambiente de zelar pela aplicação de estudos de impacto ambiental, quando cabíveis, na área da agricultura transgênica; o descumprimento da Resolução CONAMA 315, que tratava da redução dos níveis de enxofre no óleo diesel, responsáveis pela morte de milhares de pessoas todos anos por doenças cardiorrespiratórias, atendendo ao setor automotivo; a edição da controvertida Lei Complementar 140/2011, fraturando a espinha dorsal do sistema de licenciamento ambiental e acabando com a salutar regra da definição de competências com base na dimensão do impacto; e, por fim, a aprovação da calamitosa Lei 12.651/2012 e da não menos nefasta MP 571/2012, que revogam o Código Florestal de 1965, beneficiando os degradadores na área rural. Vale dizer, tais alterações demonstram que o Governo Federal não é capaz de fazer com que o art. 170, incisos III e VI, da Constituição Federal, sejam cumpridos.
Fica claro, portanto, que a “correção” da rota não está sendo dada pelo Governo do Brasil, nem pela China, Rússia, Índia, Alemanha ou Estados Unidos. Trata-se, simplesmente, de cumprimento da “lição de casa”, pelos governantes, em obediência às exigências do mercado. No Brasil, isto não é novidade nenhuma, desde o momento em que Lula, em seu primeiro mandato, tranqüilizou o mercado sinalizando com a manutenção dos mesmos nomes escolhidos por FHC para o comando de nossa política financeira e monetária.
Foi este “cacife” que permitiu ao Governo Brasileiro, recentemente, modificar uma tendência de edição de medidas cautelares sobre temas como meio ambiente e populações indígenas pela Comissão da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos da OEA. As medidas cautelares vinham sendo editadas normalmente por referida comissão, sem objeções por parte dos países que compõem essa organização internacional. No entanto, em dado momento, aquela tão simpática comissão ousou manifestar-se sobre violação de direitos humanos no caso da Usina de Belo Monte. Ora, aqui os interesses de mercado estavam sendo contrariados, o que deixou o “Brasil” (assim mesmo, entre aspas) descontente.
De qualquer forma, que fique bastante claro: as aparências serão mantidas e as medidas continuarão sendo editadas, sempre que versarem sobre “casos individualizados”, ou seja, que não incomodem o mercado.
Poder-se-ia dizer que sucede o mesmo na China, em Cingapura ou em Taiwan, onde o mercado internacional consente com a violação de tratados internacionais sobre direitos dos trabalhadores ou das crianças. Isso, porém, é apenas uma meia verdade, pois ainda nos encontramos sob o império da Constituição de 1988. E é esse diferencial do Direito Ambiental brasileiro, isto é, sua base constitucional, que ampara o discurso jurídico daqueles que não se contentam com o documento final da Rio + 20, apresentado pela diplomacia brasileira como algo primoroso. As regras que legitimam a vontade popular não estão obedecidas. Estamos, na verdade, nos distanciando da ordem constitucional. Isto não é tema que possa ser submetido à jurisdição da OEA, nem muito menos do PNUMA.
É preciso pensar na ordem econômica vigente e no quanto ela ameaça o futuro da vida no planeta. Certo é que não foi construído nestes últimos dias um Direito Internacional mais efetivo na defesa das futuras gerações, mas pudemos ao menos refletir sobre ordem econômica vigente, sobre o quanto ela ameaça o planeta, sobre o futuro que queremos evitar. A ausência da expressão “meio ambiente” no nome oficial da conferência da ONU, no fim das contas, foi significativa. O documento produzido na Rio + 20 não poderia mesmo ser nada além de uma declaração lavrada num período de hegemonia do capitalismo financeiro.
Nessas condições, talvez mereça ele aplausos, mas só da parte de quem se contenta em obedecer às regras do mercado.
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