Lembro-me da época de criança, no final dos anos 60, em Itaiópolis (SC), que os recicláveis rendiam um bom dinheiro. Eu e toda a piazada da comunidade juntávamos estes materiais para vender para um caminhão que passava de tempos em tempos.
Basicamente, eram coletadas latas de metal (não existia de alumínio), utensílios domésticos (panelas e bacias) velhos de alumínio, vidro e ossos que a gente apanhada nos potreiros das carcaças do gado que morria de alguma doença e para nossa sorte nunca eram enterradas, devido ao trabalho que isto dava.
O que eu nunca imaginei é que aquela atividade de descolar alguns trocados daria nos dias de hoje o passaporte para participar da conferência do meio ambiente, em Brasília, promovida anualmente pelo Ministério do Meio Ambiente e congrega estudantes representando as escolas de todo o Brasil.
Esta atividade de vasculhar as taperas em busca de panelas velhas de alumínio amassadas e ferramentas agrícolas quebradas de ferro enferrujado nunca precisou ser estimulada pela escola. Foi suficiente saber pelos mais velhos que tinha alguém que comprava determinado material que a gente guardava a espera do caminhão que comprava.
Na verdade, teve uma ocasião, já minha pré-adolescência, que uma instituição estimulou a coleta dos recicláveis. Não foi bem a instituição, mas seu representante, o chefe dos escoteiros. O objetivo, segundo ele, era para angariar fundos para o movimento. Lembro-me que até gincanas foram promovidas para ver quem juntava mais recicláveis.
Coitados dos vizinhos e demais moradores de Itaiópolis. Eram incomodados o tempo todo pela piazada suplicando – ou, melhor, enchendo saco – para deixarem garimpar em seus quintais os valiosos recicláveis. Quando se usava as palavras mágicas “é para os escoteiros”, eles abriam o coração e davam até as sucatas guardadas no paiol.
Descobrimos mais tarde que o dinheiro dos recicláveis não era exatamente para o nosso grupo de escoteiros, mas para o bolso do chefe. Isto explicava o grande empenho dele em nos cobrar a coleta de quantidades cada vez maiores de recicláveis. Ficamos muito decepcionados, como se pode imaginar. Usou as crianças e o nome do movimento para benefício próprio.
Certamente, hoje ele ainda ganharia um prêmio ambiental e matérias de capa nos jornais por estar “conscientizando” as crianças, considerando que aquelas montanhas de recicláveis que catamos nas casas e nas taperas são muito utilizados como indicadores da “consciência ambiental” aqui no Brasil. Seria também o “case” apresentado na conferência do meio ambiente.
Alguém pode estar curioso para saber por que eles queriam os ossos? Nós também tínhamos esta curiosidade. Era para fabricar farinha de osso, utilizada na ração animal. Agora dá para entender porque algumas doenças do gado se espalhavam tão rapidamente.
Ah! Naquela época o conceito de reutilizar também estava muito presente no dia-a-dia. As formas de pães e bolos, bacias e canecos eram confeccionados de latas de óleo de soja que eram desmanchadas e suas folhas remendadas com rebites para a produção das peças maiores, no caso das formas e bacias. Estes utensílios custavam bem menos do que os de alumínio.
O que surpreende é uma atividade tão antiga e bastante difundida que é o comércio de materiais recicláveis ter ido parar dentro da escola como uma grande novidade para salvar o planeta. Não sei se é preciso a escola ensinar que é bom ganhar dinheiro.
A reciclagem do lixo, quer dizer, das latinhas de cerveja e das garrafas PET, é o assunto predileto da maioria esmagadora das escolas para trabalharem a temática ambiental. Temas de grande relevância para a sociedade como o desmatamento da Floresta Amazônia ou do que resta da Mata Atlântica e das matas ciliares dos rios que abastecem a cidade – e a escola -, bem como a perda da biodiversidade, poluição, consumo etc. não tem chances alguma de competir com a reciclagem do lixo.
O que se entende por educação ambiental é pedir para os alunos catarem e trazerem a maior quantidade possível de latinhas de cerveja e garrafas PET para as dependências da escola. Então, este material é vendido para levantar fundos para a escola. Fazer sua parte para salvar o Planeta é simplesmente isto. Muito fácil, não é mesmo?
Em Jaraguá do Sul (SC), bem como nos municípios vizinhos, tem uma empresa privada que faz a coleta seletiva. Além disso, tem a cooperativa de catadores. Já teve até morte em um parque da cidade numa briga entre catadores pela disputa das latinhas de cerveja vazias, de tão valioso que é este material. Agora, os catadores, que lutam para sobreviver, têm que disputar as latinhas e garrafas PET com as escolas que também entraram no páreo.
É uma concorrência desleal, pois a escola explora a mão de obra do seu exército de alunos para coletar os recicláveis. Já o coitado do catador tem que perambular dia e noite pela cidade, empurrando seu carrinho e correndo risco de perder a vida se invadir, sem saber, o território de um catador hostil.
O grande problema dos recicláveis domésticos é que são necessários volumes grandes para valerem alguma coisa. E acumular os recicláveis requer muito espaço, que também é problema. Quem tiver alguma estratégia de baixo custo para juntar grandes quantidades, consegue um bom resultado com a venda.
Será que existe alguma eficácia disso na educação ambiental das nossas crianças? Vou citar o exemplo de uma escola pública de ensino fundamental de Jaraguá do Sul, que coleta e comercializa materiais recicláveis já faz algum tempo. Usando um bom marketing ambiental, do tipo, “vamos salvar o planeta”, chega a fazer campanhas agressivas para estimular os alunos a coletarem e trazerem os recicláveis para a escola.
Uma destas campanhas lançada pela escola neste ano foi a gincana de coleta de garrafas PET com ofertas de prêmios ou notas para os alunos que trouxessem mais garrafas. Muitos pais reclamaram que o consumo de refrigerantes havia triplicado com a campanha. As crianças estavam empantufando-se de tanto tomar refrigerantes para esvaziar o maior número possível de garrafas e ganhar a gincana. Chegavam a pressionar a família, até os avós e os irmãozinhos, para consumirem mais refrigerantes.
Outro exemplo vem de uma escola particular de Florianópolis. Para aderir à moda da reciclagem a escola instalou ao lado da cantina uma daquelas máquinas de amassar as latinhas de refrigerantes. As crianças adoravam a novidade – ou melhor, o brinquedo – e ficavam amassando as latinhas o tempo todo na hora do recreio. Faziam até fila para disputar a maquina. Resultado: o consumo de refrigerantes aumentou assustadoramente e a direção da escola teve o bom senso de retirar a máquina. Deve ter sido reclamação dos pais.
Há ainda casos de escolas que montaram uma verdadeira indústria química para fabricar sabão explorando o conceito de utilizar óleo de cozinha. Ocorre que a receita leva produtos químicos de manuseio muito perigoso, como a soda cáustica e o álcool. Uma coisa é a professora fazer uma demonstração, dentro da disciplina de química, de como se fabrica o sabão. Isto é muito educativo, sem dúvida. Outra coisa é fabricar sabão na escola em larga escala e forçar as crianças a venderem o produto. Que exemplo estão dando para as crianças? Estão ensinando que uma indústria química pode operar sem nenhuma licença ambiental e que o produto não precisa de nenhum teste.
Esta visão extremamente limitada que as escolas têm das questões ambientais é em parte reflexo da situação deplorável em que se encontra o nosso ensino. Embora, em certos casos é bastante nítido que o objetivo é ganhar dinheiro usando a preocupação com o meio ambiente como estratégia de marketing. Mas não se está tentando criar nenhum valor ético em relação ao consumo.
Abordar temas tão importantes para a sustentabilidade como conservação da natureza, desmatamento, perda de biodiversidade etc. (que contemplam de uma forma bem mais compreensível a questão do consumo) é ainda um tabu nas escolas. Percebi que em muitos casos isto ocorre não é tanto pela falta de interesse dos professores, mas é porque eles realmente não podem tratar destes temas em sala de aula, pois vão criar problemas para a escola.
Se conseguirmos fazer com que as escolas trabalhem com intensidade e profundidade estes temas, salvaremos o que resta da Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, sem que as nossas crianças fiquem gordinhas de tanto tomar refrigerantes.
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