Se as pessoas percebessem como realmente a natureza é perfeita, frágil e única, as sociedades humanas não precisariam de nenhuma lei para protegê-la. Todos teriam um cuidado extremo para manter intocáveis os vestígios que ainda restam dos ecossistemas e o bordão “a natureza faz parte da nossa vida” deixaria de ser uma frase tão oca.
Não existe jeito melhor de entender como a natureza funciona e o verdadeiro sentido da vida do que percorrer a trilha de uma mata preservada. Por outro lado, não existe também nada mais deprimente do que andar em uma mata, admirar toda aquela fabulosa diversidade de formas de vida interagindo e saber que mais cedo ou mais tarde tudo isso não estará mais ali, será destruído para sempre.
Apesar de devastação ser intensa e a biodiversidade estar sendo aniquilada, a prioridade máxima para investimentos é a “restauração”, termo que é usado indevidamente, já que não se restaura nada, apenas se planta algumas mudas de árvores. É óbvio que recuperação de áreas é importante e necessária, mas não tem urgência e não faz o menor sentido diante deste quadro alarmante de desmatamento. Pressa é preciso ter para salvar o que está sendo destruído.
Além disso, a regeneração ocorre espontaneamente por processos naturais, que é mais segura, praticamente não envolve recursos e é muito rápida quando próxima a uma mata preservada, se o resultado esperado a curto prazo é a formação de um capoeirão. Os bananais abandonados na Serra do Mar da região norte de Santa Catarina, por exemplo, são engolidos pela floresta em menos de 10 anos. O pomar e a área de 0,5 ha desmatada na véspera da compra da área que posteriormente transformamos na RPPN Santuário Rã-bugio também levou menos de 10 anos para ser espontaneamente recoberta pela floresta (o monitoramento foi registrado por fotos).
Os adeptos da tal “restauração” ficam entorpecidos porque a atividade dá muito dinheiro e não gera conflito com os devastadores, que passam a ser a alma deste lucrativo negócio. Nesta simbiose perversa quanto mais destruição, mais dinheiro se ganha. A “restauração” ganha também muito mais atenção da mídia, já que enaltece a magnificência do homem na natureza. Um falso poder de reconstruir o que destrói, como se a complexidade de um ecossistema tropical fosse um simples campo de agricultura ou um jardim. É uma ilusão acreditar ser possível restaurar o que foi destruído, como se fosse possível ressuscitar milhares de formas de vida.
Contudo, saindo do mundo da fantasia, não existe satisfação maior do que aquela proporcionada ao se contemplar um raro fragmento de floresta tropical de verdade, como é a nossa Mata Atlântica, repleta de formas de vida, com gigantescas árvores centenárias cheias de bromélias e cipós, que até aqui tem conseguido escapar da devastação.
Não tem uma caminhada pelas trilhas que não reserve surpresas de causarem êxtase, como encontrar uma ave ou mamífero ameaçado de extinção, uma linda borboleta rara, uma serpente ou anfíbio e assim por diante. Comportamentos da fauna desconhecidos, às vezes, até da ciência são também comuns de serem observados quando entramos em uma floresta de verdade, bem preservada.
Um comportamento que me chama atenção é o dos quatis (Nasua nasua). Eu sempre ouvia falar coisas muito negativas destes animais, porque devido à perda do hábitat eram socados em ilhas, zoológicos, unidades de conservação etc., onde eram mantidos por perto com muita comida para servirem de atrativo aos turistas e, desta experiência desastrosa de interferir na natureza, acabaram por difamar o quati, como se ele fosse o vilão. A sorte dele é ser muito simpático, o que lhe garante certa imunidade contra preconceitos perante a população. Mas o comportamento dos quatis que a gente ainda vê na natureza, lutando para sobreviver nos fragmentos cada vez menores, é totalmente diferente daqueles quatis revirando o lixo dos centros de visitação das unidades de conservação.
No ano passado, presenciamos um fato desagradável quando estávamos percorrendo uma das trilhas da RPPN Corredeiras do Rio Itajaí, em Itaiópolis (SC), de nossa propriedade, que fica inserida em uma imensa mata preservada contínua que se estende por milhares de hectares às margens do rio Itajaí (que passa em Blumenau). Após uma hora de caminhada, observando muitas aves e pegadas de mamíferos, nossa alegria foi interrompida ao ouvimos latidos incessantes de cães, que denunciavam a presença de caçadores naquele domingo de manhã. Em seguida, ouvimos um tiro. O jovem agricultor que nos acompanhava, morador do entorno, nos explicou que certamente tratava-se do abate de um quati. Explicou a técnica utilizada: os cães localizam o grupo de quatis no chão e estes fogem subindo na árvore mais próxima que nem sempre está com a copa conectada com outras árvores. Então, o quati que teve o azar de subir numa árvore isolada fica acuado com os cães em baixo latindo até o caçador chegar, quando recebe o tiro certeiro.
Mas o desgosto deste dia foi recompensado algumas semanas depois. Finalmente eu consegui dar de cara com um grupo de quatis que estava fuçando o chão da floresta. Na fuga, três deles subiram nas árvores erradas e ficaram desesperados. Procurei tirar algumas fotos para sair o mais rápido possível dali de tão angustiante que era observar a reação de pânico destes simpáticos animais. Além do som característico que emitiam, um deles (uma fêmea), defecou e urinou sobre mim, quase acertando o alvo – escapei por pouco. Foi aí que eu percebi como estes animais são vulneráveis, tornam-se presas fáceis dos caçadores e por isso já foram exterminados da maior parte dos fragmentos isolados de Mata Atlântica.
Ao analisar as fotos no computador observei que a fêmea tinha os mamilos bem salientes e totalmente expostos, revelando que estava em lactação, ou seja, com filhotes. Um detalhe que certamente é ignorado pelos caçadores, que impiedosamente abatem a tiros todos que estiverem acuados.
Um dos benefícios dos quatis para a floresta que se nota na RPPN é a atividade de eles revolverem o solo e troncos em decomposição a procura de invertebrados (minhocas, larvas etc.). Por onde quer que a gente ande, o chão da floresta está todo revirado. Neste longo período de estiagem, uma das secas mais severas que já ocorreram na região, observamos algo surpreendente. O leito do rio principal estava com água cristalina, enquanto um dos afluentes, que nasce e tem todas sua extensão dentro de mata primária da RPPN, estava com a água bastante turva, o que não ocorre nem após as chuvas fortes. Logo descobrimos o que estava acontecendo.
Com a seca, os quatis e também os catetos (Tayassu tajacu) se concentraram e passaram a fuçar somente nas margens deste riacho (desrespeitando as APPs), o único lugar úmido que restou, e desta forma produziam o efeito. Percorremos cerca de 400 metros desse riacho e encontramos suas margens completamente reviradas, com terrões que rolaram para o leito e estavam se dissolvendo, o que explicava a água turva. Foi interessante constatar que eles beneficiavam também os peixes nativos com este comportamento. Onde o riacho desembocava no rio principal havia uma concentração incrível de lambaris e outros peixes aproveitando a oportunidade de se alimentar dos petiscos lançados pelos quatis e transportados pelas águas deste riacho, muito bem vindos nesse período de grande escassez de comida devido à longa estiagem, incomum na região.
Contemplar tudo isso nos deixa apaixonados pela Mata Atlântica com toda sua riqueza de biodiversidade, mas é muito angustiante perceber que não há prioridade e tampouco urgência em deter esta destruição que ocorre de forma intensa. A integridade das poucas matas preservadas que ainda restam está muito vulnerável, há pressão de todo o tipo: desmatamento, caça, captura de aves para o tráfico, espécies invasoras como abelhas africanas e plantas. Defender as áreas remanescentes não dá dinheiro, só encrenca, mas se não mobilizarmos a sociedade para concentrar os esforços e os recursos para salvá-las, certamente estaremos condenando a Mata Atlântica à extinção, com uma enorme perda de biodiversidade.
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