Há muito tempo acompanho de perto a rotina de agricultores familiares tanto em Itaiópolis (SC) como em Guaramirim (SC), que vivem no entorno das RPPN Corredeiras do Rio Itajaí e RPPN e Santuário Rã-bugio, criadas pela minha mulher e eu. Aprendi muito com eles sobre a biodiversidade local, mas o que mais me tem impressionado é perceber como são adaptados para o modo de vida que aquele ambiente exige.
Em Itaiópolis (SC) o principal cultivo é o tabaco, já em Guaramirim (SC) é o arroz irrigado por inundação. No caso de Itaiópolis, nos últimos anos, os fumicultores passaram a receber uma melhor remuneração e tiveram uma notável melhoria nas condições de vida. Basta andar pelo interior e observar o padrão das casas deles e aquele possante trator e outras máquinas agrícolas e um carro novo na garagem de toda a propriedade rural.
Acho que houve também um processo de seleção natural e só permaneceram os agricultores mais adaptados, que trabalham muito e acumulam larga experiência na atividade, conhecimento passado através de gerações. Eles aprenderam a tirar “leite de pedra”, esta é a verdade. Durante o pico da colheita de fumo, quando todos estavam trabalhando freneticamente colocando as folhas para secagem na estufa, o chefe da família de pequenos agricultores, sem parar o serviço, abraçado a um feixe de folhas de tabaco, olhou para mim e desabafou: “Não á fácil ganhar dinheiro com isto”.
Se para estas famílias com uma adaptação incrível ao meio não é fácil, imagine então para as pessoas da cidade, sem nenhuma experiência em agricultura, tentar a vida no campo. Lá em Itaiópolis mesmo a gente vê vários casos de aventureiros da cidade que tentam e, no máximo, 5 anos depois desistem, deixando dívidas enormes nos bancos e no comércio local.
Pior são aquelas famílias das metrópoles que resolvem tentar a vida no campo ou simplesmente viverem da aposentadoria e se apresentam como aliadas da conservação da natureza, trazendo consigo toda ignorância acumulada ao longo de anos da vida urbana. Um caso que conheci, a família veio de Curitiba para “viver em harmonia com a natureza” e na mudança trouxe mais de 100 gatos, que se reproduzem livremente soltos na propriedade. Eu cheguei a ver três gatas no terreiro amamentando as crias. Seria uma das primeiras gerações de gatos nascidos ali. Ao invés do som das corujas, o que eu só ouvia a noite toda foram aqueles miados angustiantes de gatos em fase de acasalamento, que fazem qualquer um perder o sono.
Depois de uma noite mal dormida, às 6 horas da manhã, eu já estava no meio da mata, distante a mais de um quilômetro da residência, quando encontrei um gato retornando da caçada, em cujo cardápio do “café da manhã” daquele dia poderia estar incluído uma cuíca ameaçada de extinção e uma ninhada de tico-tico. Andando pela propriedade, tive dificuldade para encontrar boas ações em prol da natureza e notei também que eles estavam atacando até a mata ciliar para extrativismo de lenha, pois optaram por não usar mais o fogão a gás.
Os fumicultores tradicionais que eu conheço em Itaiópolis não estão usando mais lenha de mata nativa, apenas de eucalipto. Um dos motivos pode ser entendido observando a foto abaixo. Como se pode ver, resta pouca mata nativa nas propriedades e as plantações de eucalipto predominam na paisagem. O desmatamento que ocorre é geralmente provocado por investidores em reflorestamento de pinus e eucalipto. Então, estes vendem a lenha para alguns fumicultores ou trocam por serviços, como por exemplo: “desmate a área para mim e pode ficar com a lenha”. Mas a maior companhia de tabaco já está exigindo que seus parceiros trabalhem dentro da lei. Segundo os fumicultores a companhia já anunciou planos de ficar somente com os mais eficientes e que trabalhem dentro da lei. E estes parceiros ela quer incentivar remunerando bem. As ações da fiscalização tem sido importantes também, é claro.
O que eu notei de especial nestes agricultores é a gama de habilidades para resolver qualquer tipo de problema, que vai deste o conserto de carro até afiar um facão. Eu não usava facão para andar no mato. Mas nas matas secundárias ocorreu uma colonização de bambuzais (taquara navalha e outros) que torna as matas impenetráveis e arrancam pedaços da sua pele se você tentar levar no peito os bambus. Graças à habilidade e a gentileza deles, meu facão está sempre bem afiado.
Esta gentileza vai além de deixar meu facão cortando como uma navalha, que eu nem preciso usar tanto. Eles sempre me acompanham nas incursões pela mata. Têm uma força e vigor físico invejável. Abrem caminho pelo bambuzal a facão com uma velocidade incrível e sem descansar. Só param para me mostrar alguma coisa interessante, como pegada de bicho, um cipó esquisito, frutos, sementes, uma ave interessante em um galho de uma árvore a frente e assim por diante.
Conhecem bem toda a biodiversidade e a ecologia das espécies com detalhes impressionantes de comportamento, dietas etc. que não existem nos livros e na internet. Sabem identificar qualquer árvore de interesse comercial. Mas eles têm dificuldade com boa parte dos nomes, das aves principalmente, o que é compreensivo, pois o número de espécies é muito grande (um rápido levantamento para o plano de manejo da RPPN encontrou 214 espécies ). No entanto, quando você mostra uma foto, eles já lhe dão a ficha completa da ave com informações valiosas.
Dias atrás aconteceu um fato muito engraçado ao mostrar-lhes a foto do arapaçu- grande (Dendrocolaptes platyrostris) Eu consegui fazer boas fotos desta ave no pequeno apiário deles, no meio da mata. Chamou-me a atenção o apetite do arapaçu pelas abelhas. Permaneci ali por quase uma hora apreciando a habilidade desta ave em capturar as abelhas, que teve a audácia de ficar até na entrada da colméia no meio daquele enxame de abelhas lhe atacando desesperadamente e, certamente, uma ou outra lhe ferroando. O arapaçu parecia que não estava nem aí, não se importava nem um pouco com a agressividade das abelhas.
“É melhor eu não contar a eles a cena presenciada, porque se eles souberem disso, o arapaçu vai entrar na lista das “pragas” (gaviões, gambás…) – pensei. Foi uma grande ingenuidade minha achar que eles não sabiam disso. Ao mostrar a foto da ave, primeira observação deles foi: “Este pássaro costuma frequentar os apiários para comer abelhas”. Então, eu revelei a verdade e a preocupação que tive. Eles riram muito e me tranqüilizaram ao garantir que não matam este pássaro ou qualquer outro bicho e deram justificativa que eu já tinha comprovado na prática. “É um pássaro de passagem, ele não fica no apiário o tempo todo”. Foi o que observei (talvez ficam até levarem uma ou duas ferroadas).
De fato, a grande maioria dos agricultores tanto de Itaiópolis como de Guaramirim não caçam mais e estão ficando mais tolerantes com os predadores. Coincidentemente esta maioria inclui todos aqueles que mais prosperam e são os mais felizes também. A grande variedade de espécies e quantidade de aves grandes e pequenas que freqüentam os pomares deles durante os dias chuvosos de inverno é um indicador de que ali é um lugar seguro. Nesta região de Santa Catarina, os traficantes de animais já estão tendo dificuldades para acharem pequenos agricultores que topem dar apoio à atividade, embora ainda seja intensa e focada em cima de três espécies de aves.
Uma outra característica que observei nesta geração de pequenos agricultores catarinenses que atingiram o padrão de classe média: o planejamento familiar. As famílias têm dois filhos no máximo. Perceberam que aquelas famílias numerosas não levavam a nada. Quando atingiam a fase final da adolescência, todos debandavam para as metrópoles em busca de melhores condições de vida. Só permanecia um ou dois filhos na propriedade. Eles perceberam qual o número ideal de filhos, que já faz parte desta adaptação ao meio. Lembrando que as mulheres também integram a força de trabalho na atividade fim e as tarefas domésticas não podem consumir todo o tempo delas.
Eu acho que a natureza tem muito mais chances neste cenário de prosperidade (sustentável) do que de miséria no campo. Se analisarmos bem, com miséria a natureza não tem chance alguma.
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