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Mais nem sempre é o melhor

Será que temos mesmo que fazer mais um monte de hidrelétricas? Para muita gente, a resposta seria “sim”. Para mim, a primeira resposta deve ser “depende”.

7 de maio de 2010 · 15 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

Nothing has to be done
(nada tem que ser feito)
Daniel Kozlovsky

Outro dia li uma belíssima crônica de Reuber Brandão para O Eco, “Vamos engolir sapos?”, sobre os anfíbios ameaçados pelos projetos de construção de hidrelétricas na bacia do rio Tocantinzinho, perto do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. E então, para meu desgosto, deparei com o seguinte comentário ao texto: “Olha, adoro as reportagens do Eco, mas quando me deparo com reportagens como essa que discriminam uma ação menos poluidora eu fico pensando o que vocês querem que o mundo pense. Não preciso concordar com tudo o que vocês estão falando, a hidrelétrica tem seus impactos, mas se não for uma hidrelétrica vai ser uma termoelétrica ou até uma nuclear. Temos um presidente que está querendo gerar energia e nem quer saber se faz mau [sic] ou bem, quer fazer, os ambientalistas já perturbaram tanto sobre hidrelétricas no país que aumentou as licitações de termoelétrica no país, sendo que até 2020 se continuar assim um país que gera mais de 70% de energia limpa, vai gerar menos de 60%, estamos regredindo. Precisamos de soluções atuais, sensatas que resolvam. Preservar a natureza não é mais nosso foco e sim conservar.”

Reproduzi o comentário na íntegra porque ele representa bem o tipo de argumento que eu quero contestar. O argumento, na verdade, está bem expresso e poderia parecer convincente para muita gente. Além disso, hoje, quando a polêmica a respeito de Belo Monte está a todo vapor, mais que nunca é importante discutir esse tipo de argumento.

Será que temos mesmo que fazer mais um monte de hidrelétricas? Ou termoelétricas, ou usinas nucleares, ou o que seja? Para muita gente, a resposta seria muito claramente “sim”. Pois eu discordo. Para mim, a primeira resposta, logo de cara, é “depende”.

Nada tem que ser feito

“Antes de tudo, dizer que hidrelétricas são uma energia “limpa” revela uma visão estreita dos problemas ambientais.”

Como escreveu o ecólogo-tornado-filósofo Daniel Kozlovsky, num livro brilhante mas infelizmente pouco conhecido (“An ecological and evolutionary ethics”), “nada tem que ser feito”. Se “temos” que fazer alguma coisa ou não, isso sempre depende de escolhas prévias. Podemos estar tão acostumados com nosso modo de vida, tão convencidos de que esse é o único caminho, que esquecemos que esse nosso modo de vida é apenas uma escolha.

A nossa escolha, ou melhor, a escolha dominante da nossa sociedade até agora, tem sido por um modelo de “desenvolvimento” baseado em crescimento econômico contínuo. Para isso, claro, é necessária muita energia, inclusive para os processos industriais. E o crescimento econômico, dizem-nos, resolverá todos os nossos problemas sociais, tornará nossas vidas melhores, nos fará mais felizes. Bom, e se é necessária mais energia, é melhor que venha de hidrelétricas, que são uma energia “limpa”.

Que tal pensarmos um pouco sobre tudo o que está embutido nas afirmações acima?

Energia por décadas e perdas para sempre

Antes de tudo, dizer que hidrelétricas são uma energia “limpa” revela uma visão estreita dos problemas ambientais. “Energia limpa” quer dizer gerar menos CO2 quando comparada a outros modos de geração de energia, como a queima de combustíveis fósseis. As hidrelétricas, cabe não esquecer, podem gerar menos CO2 que as termelétricas mas são grandes geradoras também, por décadas, do CO2 originário da decomposição dos organismos que elas submergiram. Mas há vários outros tipos de impactos ambientais além da emissão de CO2 – inclusive alguns, como no caso, tragicamente mais diretos.

“O que mais importa é o habitat submerso e perdido para sempre – o que mais importa são as muitas milhares de gerações de bichos que não vão mais existir porque o lugar onde viveriam está hoje no fundo de um reservatório.”

É bom lembrar que hidrelétricas, além de seus óbvios impactos sociais, tem efeitos devastadores sobre a biodiversidade. Elas destroem vastas extensões dos frágeis ecossistemas fluviais, impedem a movimentação de numerosas espécies de peixes, incluindo algumas que precisam desses deslocamentos para se reproduzirem, e causam as extinções locais de anfíbios das quais falou o Reuber. Aí fazem vistosas operações de “resgate de fauna” para salvar uns poucos bichos de toda aquela geração de animais de muitas espécies que é afogada por cada hidrelétrica construída. A gente fica tão impressionado que até esquece que aquela geração é apenas uma gota d’água num oceano de tempo. O que mais importa é o habitat submerso e perdido para sempre – o que mais importa são as muitas milhares de gerações de bichos que não vão mais existir porque o lugar onde viveriam está hoje no fundo de um reservatório.

Todos esses impactos, é bom lembrar, são para uma forma de geração de energia que é essencialmente descartável. Grandes hidrelétricas inevitavelmente enfrentam problemas de assoreamento e tem prazos de vida de décadas, antes de terem que ser desativadas, deixando vastas áreas degradadas no lugar de maravilhosas áreas naturais que um dia destruíram. Em qualquer avaliação ampla, hidrelétricas estão muito longe de ser uma forma ecologicamente saudável de gerar energia, tendo impactos infinitamente maiores que os da energia solar ou eólica por exemplo.

Precisamos mesmo usar tanta energia?

Depois, as afirmações acima presumem que a energia produzida esteja sendo bem utilizada, e portanto necessária. Esse pressuposto é claramente falso. A economia brasileira atual e nossos modos de vida atuais são imensamente desperdiçadores. Nossos processos industriais são em sua maior parte obsoletos em termos de eficiência energética. Para embalar seus produtos a indústria produz anualmente milhões de toneladas de embalagens completamente dispensáveis, que são usadas uma só vez. Isso não só gera montanhas de lixo – nem sempre reciclável, muito menos efetivamente reciclado – como também gasta inutilmente uma imensa quantidade de energia. Além disso, a maioria de nós usa energia em casa de forma absurdamente desperdiçadora, como se fôsse um recurso inesgotável. Muita gente ainda usa lâmpadas incandescentes, que gastam pelo menos cinco vezes mais energia que lâmpadas modernas. Ainda se compra um monte de eletrodomésticos supérfluos e/ou redundantes, sem levar em conta quanta energia eles consomem. Ainda se deixa essas traquitanas ligadas o dia todo, mesmo quando não estão sendo usadas. Nas cidades burras, planejadas para carros e não para transportes coletivos, as ruas estão cheias de carros que consomem muito mais que o necessário, porque carros são escolhidos mais pelo seu valor de status do que pelo seu consumo.

Cada vez há mais pessoas que se importam com essas coisas, mas ainda muito longe de ser maioria. No seu estado atual, nossa sociedade ainda é uma vastíssima desperdiçadora de energia em coisas que não, não são necessárias. Se quiséssemos mesmo, seria relativamente fácil cortar pela metade nosso consumo e energia – sem diminuir em nada nossa qualidade de vida. Seu sonho era ir para a Califórnia? Pois nas últimas duas décadas, graças a uma legislação que estimula vigorosamente a eficiência energética, o consumo de energia per capita permaneceu estável na Califórnia, enquanto quase duplicou no resto dos EUA. Você viu algum californiano se queixando que seu padrão de vida caiu em relação ao resto do país? Se precisamos ou não de mais um monte de hidrelétricas, então, depende – depende de nossas escolhas na maneira de viver e de consumir.

Crises como tragédia ou como oportunidade

Há, porém, uma segunda resposta à pergunta “será que temos mesmo que fazer mais um monte de hidrelétricas?” Essa segunda resposta, a longo prazo, é, claramente, “não”.

“Em vez de investir maciçamente agora em pesquisa científica e em inovação tecnológica em eficiência energética, o Brasil, que se diz uma potência, se condena a ter no futuro que comprar  tecnologias a peso de ouro.”

Com a desordem climática global, o mundo está diante de uma ameaça mundial numa escala absolutamente sem precedentes, que afetará tudo ao mesmo tempo, não só os problemas ambientais, mas também os econômicos e sociais, que cada vez mais caminham juntos. Como qualquer grande crise, pode ser vista como uma tragédia, ou como uma oportunidade.

Vários países – principalmente europeus, embora os EUA e o Japão também já estejam acordando – já estão vendo a desordem climática global como uma oportunidade. Esses países já perceberam que em energia menos é o melhor. Lá estão sendo feitas coisas como turbinas muito mais eficientes para gerar a energia, eletrodomésticos, motores elétricos e iluminação urbana de altíssima eficiência, aproveitamento energético do calor produzido nas termelétricas, sequestro do CO2 nas termoelétricas antes de ir para a atmosfera, carros a hidrogênio, ruas que geram energia com a passagem dos carros (!), métodos industriais economizadores de energia, refrigeração de prédios com gelo acumulado ao invés do dispendiosíssimo ar condicionado, redes de distribuição de energia computadorizadas, descentralizadas e vastamente eficientes, e uma arquitetura tão inteligente que há grandes condomínios inteiros, como o Beddington Zero Energy Development, em Surrey, na Inglaterra, que geram eles mesmos toda a energia que consomem.

Esquecendo a canção de Vandré

Enquanto isso, no Brasil, nossos governantes dizem que somos ecologicamente avançados na questão energética porque estamos fazendo mais hidrelétricas para produzir energia “limpa”, e porque destruimos vastas áreas de ecossistemas naturais, como no caso do cerrado, para plantar biocombustíveis. Precisa comentar? Em vez de investir maciçamente agora em pesquisa científica e em inovação tecnológica em eficiência energética, o Brasil, que se diz uma potência, se condena a ter no futuro que comprar essas tecnologias a peso de ouro, por falta de visão de nossos governantes. Diante da maior de todas as revoluções – a que precisamos fazer para enfrentar a desordem climática global – eles, que se dizem de esquerda, parecem ter esquecido a célebre canção de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber / quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” Na questão energética, o Brasil está esperando acontecer, e com isso perdendo o trem da história.

Não gosto muito de política, não pela política como atividade idealizada, mas pelo que fazem dela no mundo real. Talvez seja até ingênuo. No entanto, minha ingenuidade não é o bastante para me impedir de ver que essa miopia de Lula e Dilma Roussef pode ser explicada pelo lobby das grandes empreiteiras que querem megaobras, dos ruralistas que querem plantar mais biocombustíveis, e por aí vai. Esses grupos de interesse querem ganhar dinheiro público com o que sabem fazer, e não que se invista esse dinheiro em tecnologias que eles não dominam. Será que não é por causa deles, e não por causa de nós, que tanto se quer investir em hidrelétricas, ao invés de energia solar e eólica, e eficiência energética?

Há outras escolhas possíveis?

Não, não temos que fazer mais hidrelétricas. Nem sequer necessariamente precisamos de mais energia do que temos hoje, pelo menos não a médio e logo prazo se usarmos tecnologias mais eficientes. Mas se nos esquemos que todas essas coisas na verdade são escolhas e não necessidades, isso é porque a mentalidade de querer sempre mais foi tão profundamente inculcada em nós. Na década de sessenta, as pessoas diziam que queriam um mundo melhor. Hoje, a cantora Claudia Leitte reflete as aspirações de grande parte da sociedade quando diz, num comercial na televisão, “eu quero mais”, se referindo a algumas bugigangas de celular. O querer mais, de certa forma, sustituiu para muita gente o querer o mundo melhor, nesta época tão sem utopias. Sempre mais, nos dizem – temos que querer mais, como aquelas pessoas sorridentes na televisão sempre querem mais. Eu, que nem celular tenho, e sou muito feliz assim, não consigo me livrar da pergunta: a gente quer mais ou quer ser feliz? É curioso, e quem sabe valioso, notar que em vários estudos realizados não houve correlação entre a felicidade e o PIB per capita dos países. Quem sabe porque, como disse uma vez Robert Kennedy, “O produto interno bruto mede tudo, em resumo, menos aquilo que faz a vida valer a pena.”

Mas será que nós, os ambientalistas, queremos só criticar, ou temos alguma alternativa para oferecer? Existem, sim, várias alternativas já propostas ao nosso modelo atual de desenvolvimento baseado em crescimento contínuo, que é tão obviamente insustentável. Seria longo demais descrever essas alternativas aqui, mas um punhado de brilhantes livros recentes – “Economia para um planeta abarrotado”, de Jeffrey Sachs, “Nossa escolha”, de Al Gore, e “Quente, plano e lotado”, de Thomas Friedman – são todos altamente positivos. Eles apresentam soluções criativas e inovadoras para os problemas do mundo atual, e alternativas para obter uma nova economia estabilizada, que seja verdadeiramente – e não apenas em discurso vazio – sustentável. Não por coincidência, todos eles defendem economias onde o objetivo não deve ser mais meramente maximizar a quantidade do que é produzido, mas sim a qualidade de vida, entendida de uma maneira muito mais ampla, da qual um ambiente saudável é componente essencial.

“Nada tem que ser feito” é muito diferente de “não temos que fazer nada”. Temos, sim, muitíssimo que fazer. Mas isso não quer dizer que hidrelétricas ou o que quer que seja precisem ser feitas. Temos outras escolhas, se formos capazes de vê-las.

Será que a gente precisa mesmo de mais hidrelétricas e menos biodiversidade nesse mundo? É esse o mundo que a gente quer? Eu só sei que esse não é o mundo que eu quero. Precisamos urgentemente aprender a pensar menos em quantidade e mais em qualidade: na qualidade das coisas que usamos, na qualidade ambiental, na qualidade das nossas vidas. Quantidade não é tudo. Mais nem sempre é o melhor.

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