“Ensaio sobre a cegueira”, do grande escritor português José Saramago, transformado em filme por Fernando Meirelles, não é só um romance brilhante. É também um livro violentamente perturbador. A idéia é criativa mas simples: uma epidemia de cegueira atinge quase toda a humanidade. Em um período de tempo muito curto – semanas ou meses – esta tragédia vai destruindo completamente não só toda a civilização que criamos, mas os próprios valores morais das pessoas.
No nosso mundo real, bem mais frequente que a cegueira é a miopia, que é a incapacidade de ver bem de longe. Muitas pessoas do planeta, inclusive eu mesmo, sofrem deste problema ótico, que de modo geral é facilmente corrigido com o uso de óculos, lentes de contato ou cirurgias. Porém, também há a miopia política, e essa infelizmente não parece ser tão fácil de corrigir.
Esse pensamento me ocorre cada vez que penso sobre a política ambiental do governo Lula. Antes de tudo, cabe esclarecer duas coisas. Primeiro, quando me refiro aqui a política não o estou fazendo no sentido estreito de política partidária, mas no sentido bem mais amplo de política como o campo de atividade onde se cuida, ou se deveria cuidar, do interesse de todos, da população. Segundo, eu votei quatro vezes em Lula para presidente: nas três eleições que ele perdeu, e naquela em que ele se elegeu para seu primeiro mandato. Cheguei a trabalhar de graça vendendo botons na rua para arrecadar recursos para a primeira campanha dele (contra o Collor). Votei nele porque, como a maioria de nós, acreditava firmemente que ele iria fazer mudanças reais e construir um país melhor. Só não votei nele para o segundo mandato, mas bem… depois do mensalão e da manutenção de tantos dos velhos hábitos, aí já seria pedir demais. De qualquer forma, já acreditei muitíssimo em Lula e daí vem a força da minha decepção.
O inimigo da vez
Há alguns dias, o presidente Lula escolheu o inimigo da vez do desenvolvimento do Brasil: a perereca. Em um discurso no Acre, Lula disse: “A gente está fazendo um grande viaduto no Rio Grande do Sul, ligando a BR-101, que vai trazer muita gente da Argentina para o Brasil e muita gente do Brasil para a Argentina. Esse túnel tem mil e poucos metros, e encontraram ao lado do túnel uma perereca. Todo mundo aqui sabe o que é uma perereca. Pois bem, aí resolveram fazer um estudo para saber se aquela perereca estava em extinção. Aí tem que contratar gente para procurar perereca, e procure perereca, e procure perereca… Sabem quantos meses demorou para descobrir se a perereca estava em extinção? Sete meses, a obra parada. Eu espero que aqui no Acre não apareça nenhuma perereca na ponte do rio Juruá. Não é possível.” As palavras escritas não dizem tudo; quem viu na televisão viu o tom de deboche, de escárnio, com o qual Lula falava da perereca, tirando risadas da platéia.
Antes de irmos ao ponto central, será que o Lula sabe mesmo o que é uma perereca, ou melhor, o que é uma espécie de perereca, ou uma espécie de qualquer coisa? Pelo jeito que o Lula fala, assim como falou uns dois anos atrás sobre os bagres do rio Madeira, tenho sérias dúvidas que ele saiba o que é uma espécie biológica. Para dar uma ajudinha, uma espécie biológica pode ser definida como um conjunto de indivíduos que são capazes de cruzar uns com os outros produzindo descendentes férteis. Trocando em miúdos, um conjunto de indivíduos compartilhando um mesmo patrimônio genético, como a espécie humana por exemplo. Cada espécie representa um caminho único seguido por três e meio bilhões de anos de evolução biológica, e como tal é insubstituível. Extinção é mesmo para sempre, ou se o Lula preferir esta linguagem, perda do patrimônio natural do país, pelo qual lhe cabe zelar pela constituição, é para sempre. Além disso, se alguém não faz nenhuma idéia de se no Brasil há dez espécies de pererecas, ou mil, ou um milhão, como ele vai poder entender o que a perda de uma espécie representa? Sempre admirei muito o Lula por ter chegado onde chegou sem um grau universitário, mas ao governante máximo de um país não é dado o direito de desconhecer a este ponto os problemas com os quais ele tem que lidar. Talvez o Lula, que já disse que não gosta de ler, ande precisando seguir o exemplo do Obama, que disse que não gosta de ler clippings, mas prefere ler os próprios jornais e revistas. Livros também ajudam.
A ofensiva contra a legislação ambiental
Mas o ponto central é que Lula está passando uma mensagem muito clara: conservação da natureza, para ele e seu governo, é uma coisa supérflua e ridícula que atrapalha o desenvolvimento. Todo o discurso ambiental oficial se baseia no chamado “desenvolvimento sustentável”, mas a sustentabilidade tão alardeada quase nunca é testada, e quando o é geralmente não é verdadeira (ver minha crônica “A tal da sustentabilidade”, aqui no O Eco). Como eu já escrevi uma vez em outro lugar: desenvolvimento sustentável, quantos crimes se cometem em seu nome. Quando vemos o Lula falando das pererecas e dos bagres, é difícil não achar que a preocupação desse governo com as questões ambientais é só para inglês ver, não é sincera. A ordem verdadeira parece ser correr atrás do “desenvolvimento” a qualquer custo, inclusive e principalmente passando por cima dos tais “entraves” ambientais.
Será que estou exagerando? Não estou convencido disso. Nunca antes na história desse país assistimos a uma ofensiva tão violenta contra a legislação ambiental como a estamos vendo agora.
A maior parte dos ataques se originam a nível federal, inclusive, como apontado por Sérgio Abranches aqui no O Eco, do gabinete da Casa Civil, ou seja da ministra-candidata Dilma Roussef, que necessita desesperadamente de resultados do PAC para transformar em votos. A perereca não está sozinha nem é tão espontânea assim, é apenas parte de uma ofensiva orquestrada contra a legislação ambiental do país. O último exemplo é a emenda à MP452/2008, proposta recentemente pelo deputado José Guimarães, do PT – aquele mesmo dos dólares na cueca – com apoio do governo federal. Numa manobra indecente, o texto – que se refere a obras na malha rodoviária federal – veio para ser votado “encaixado” dentro de um outro projeto de lei sobre o fundo soberano. A proposta imoral fixa em 60 dias o prazo para máximo que seja concedido licenciamento ambiental; após 60 dias o licenciamento seria automático. Ou seja, é só enrolar um pouco, atrapalhar o processo, e faz-se a obra sem licenciamento ambiental. Além disso, entre várias outras coisas, há a proposta de anular o decreto 6321/2007 que entre outras coisas impede que desmatadores ilegais da Amazônia continuem tendo acesso a créditos públicos, e a sanha do ministro Mangabeira Unger para “flexibilizar” (eufemismo trágico) a legislação ambiental nas obras do PAC na Amazônia.
Outros ataques são a nível estadual, como o esdrúxulo e inconstitucional código florestal (também chamado código anti-florestal) aprovado em Santa Catarina. Ironicamente esse é o estado onde mais de 120 pessoas foram mortas há poucos meses por uma enchente cujos efeitos foram multiplicados pelo desmatamento das encostas; o governador culpou as “intempéries”, o que é sempre a saída mais fácil. Outros ainda são a nível municipal, como a não menos esdrúxula bolsa-floresta (também chamada bolsa-invasão), que poderia premiar os invasores de áreas de proteção ambiental, projeto esse aprovado pela câmara de vereadores do Rio de Janeiro. Embora para seu crédito o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, tenha se oposto vigorosamente a ambas as iniciativas, não há dúvida que a atitude geral do governo federal de derrubar os “entraves” ambientais estimula que propostas assim continuem surgindo também a níveis estadual e municipal.
Todos esses ataques partem de uma mesma percepção: a de que a conservação da natureza é um entrave para melhorar a vida das pessoas. Isso é um exemplo claríssimo de miopia política, ou seja, da incapacidade de enxergar longe.
Diagnóstico da miopia política
Expliquemos nosso diagnóstico da terrível doença. O ponto fundamental é que a percepção descrita acima só faz sentido em uma escala pequena, de espaço e de tempo. A natureza é muito mais que uma coleção de pererecas e outros seres vivos que podem ou não estar atrapalhando o caminho de um viaduto. Hoje sabemos que a natureza fornece uma imensa variedade de serviços ecológicos os quais, entre outras coisas, permitem a nossa própria vida nesse planeta. Destruir a natureza localmente e agora pode até trazer benefícios para uns poucos – beneficiados localmente e agora – sempre à custa de muitos, prejudicados de maneira mais difusa, pela piora das condições sociais do país como um todo, no futuro próximo pelo qual cabe a um governante zelar.
Veja por exemplo as florestas, de cujos inimigos o governo quer facilitar a vida. As florestas, claro, são habitats para uma porção considerável da biodiversidade, e por proteger as nascentes dos rios garantem a qualidade da água que bebemos. Mas há vários outros serviços ecológicos importantes que também são exercidos por elas, dos quais vou citar só três. Primeiro, as florestas regularizam o fluxo hídrico, fazendo que a água das chuvas seja absorvida e liberada gradualmente, prevenindo as enchentes. Segundo, as florestas protegem as encostas contra a erosão. Terceiro, as florestas também fixam CO2 em grande escala, e a perda delas é uma das maiores causas das mudanças climáticas globais. Agora junte os três! É cada vez mais óbvio o aumento da freqüência de grandes catástrofes ambientais nos últimos anos. No Brasil está havendo uma longa série de enchentes devastadoras nos últimos meses em vários estados. No momento que escrevo são Maranhão, Piauí, Ceará, semana que vem serão outros.
Será que alguém já calculou quantas pessoas foram mortas no total nessas enchentes nos últimos seis meses? Centenas, aí incluídas as de Santa Catarina. Quantas perderam tudo o que construíram na vida inteira? Será que a complacência do governo com o desmatamento melhorou a vida dessas pessoas? Duvido muito. Será que a desertificação produzida por mudanças climáticas no oeste do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina melhorou a vida das pessoas de lá? Também duvido muito. Será que alguém contabilizou os prejuízos econômicos da desertificação? E será que o Lula percebe que ao manter o Brasil como um dos grandes causadores das mudanças climáticas globais, em troca de benefícios sociais localizados e imediatistas, ele está dando sua importante contribuição para tornar o mundo pior, inclusive para os brasileiros e brasileiras? Aí eu já não sei.
Também não sei se algum dia vão fazer um clipping do “Colapso”, de Jared Diamond, para o Lula. Quem dera. Aí ele aprenderia que várias importantes civilizações do passado produziram sua própria ruína social e econômica por não saberem manejar adequadamente os ambientes dos quais dependiam. Aprenderia que a República Dominicana e o Haiti compartilham a mesma ilha (Hispaniola), mas enquanto o primeiro país conservou bem sua metade e hoje é próspero para os padrões latino-americanos, o Haiti devastou completamente a sua e é hoje o país mais pobre do hemisfério.
Um modelo obsoleto de desenvolvimento
Conservação só atrapalha o desenvolvimento se definimos “desenvolvimento” num sentido antiquado e de visão curta. Lula persegue obstinadamente um modelo de desenvolvimento do século XIX, baseado em exportação de commodities agrícolas, crescimento da produção industrial, aumento do uso de combustíveis fósseis e dilapidação dos recursos naturais. Mas nós estamos no século XXI, num planeta superpovoado e saturado, onde um país que queira melhorar a qualidade de vida de seu povo não pode mais ter esses objetivos obsoletos. Um modelo de desenvolvimento do século XXI precisa se basear em maciço investimento na educação básica, na ciência e na tecnologia; em exportação de inovação; em crescimento do setor de serviços com atividades de baixo impacto ambiental; em maciço investimento em fontes alternativas de energia; e em um uso sábio de recursos naturais que serão cada vez mais escassos nas próximas gerações. Um modelo de desenvolvimento do século XXI precisa não ter como objetivo desesperado maximizar o PIB a qualquer preço ambiental e social, mas sim a qualidade de vida das pessoas, definida num sentido amplo que inclua a qualidade do ambiente onde elas vivem.
Lula fala toda hora do que o seu governo representa na história desse país. Mas como será que ele quer ficar na história? Por que ele não se inspira no exemplo de seu colega lá de cima? Barack Obama recebeu uma herança trágica de Bush e em apenas cem dias já está fazendo uma mudança radical, que está tirando os Estados Unidos de uma posição de obscurantismo ambiental e tem tudo para colocá-lo numa posição de liderança mundial. Se isso acontecer, os benefícios para a qualidade de vida dos americanos e de todos nós serão imensos, e Obama certamente será lembrado como um dos maiores presidentes que os Estados Unidos já tiveram. Como Lula quer ser lembrado? Como o pior governo, do ponto de vista ambiental, da história desse país? Ou como alguém que, como Obama, também foi capaz de enxergar mais longe?
Aqui cabe um comentário lateral. Na fala de Lula sobre a perereca, ficou óbvio também o seu desprezo pelos cientistas. Não se trata de sete meses procurando pererecas, como se a questão toda fosse ridícula. Não é. Não basta saber se a perereca está lá ou não para fazer um estudo de impacto ambiental. Qualquer estudo decente de uma questão assim precisa entender processos ecológicos para poder avaliar como as obras previstas afetariam a demografia das populações biológicas envolvidas. Sei bem que nem todos os estudos de impacto ambiental no Brasil são bem feitos, muito longe disso, mas para um estudo bem feito sete meses não são, de jeito nenhum, um prazo longo demais. Será que nesse caso as pessoas que estavam fazendo este estudo não foram crucificadas apenas por estar tentando fazer seu trabalho direito? Fica a pergunta: Lula, Dilma, Mangabeira e companhia querem de fato saber se o que estão propondo é desastroso ou não, ou querem apenas uma autorização o mais rápido possível? É bom que o Lula aprenda a respeitar mais os cientistas, pois cada vez mais, se quiser ser bem lembrado, vai precisar deles.
Tem cura?
O livro de Saramago tem um final feliz. As pessoas aos poucos voltam a enxergar; a cegueira, no livro, cura-se sozinha. Já a miopia não se cura sozinha. Na verdade, quando começa, muitas vezes na adolescência, a gente demora a perceber que aquela dor de cabeça, e a queda de rendimento nos estudos, são porque a gente já não está conseguindo ver longe. Então se faz óculos e se corrige o problema. Ou seja, o primeiro passo é perceber que se tem miopia. Nesse ponto, a miopia política é igualzinha.
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