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O planeta onde os políticos vivem

Da tela da minha televisão, vejo que o mundo dos candidatos à presidência não tem problemas ambientais. O pouco que dizem sobre o tema é constrangedor.

26 de outubro de 2010 · 14 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

A disputa eleitoral finalmente está fervendo. As campanhas dos dois candidatos para o segundo turno das eleições presidenciais tomam conta da mídia. O debate das ideias de ambos domina o noticiário. Mas… há alguma coisa estranha! Minha televisão deve estar mostrando imagens da campanha presidencial em algum outro planeta. O planeta daqueles candidatos lá na telinha, claro, não tem problemas ambientais.

Os tais dois candidatos praticamente não falaram nada de questões ambientais no primeiro turno. Assim que começou o segundo turno, ambos juraram que eram ambientalistas desde criancinhas. Pagaram um mico gigantesco, quase um gorila, para tentar abocanhar votos da candidata derrotada no primeiro turno, Marina Silva. Mas agora, nem isso. O pouco que eles dizem sobre questões ambientais é constrangedor, só mostra que eles não têm a menor ideia do que estão falando.

Um planeta sem mudanças climáticas

Em que planeta será que eles vivem? No planeta deles, não há mudanças climáticas globais acontecendo. Não há branqueamento dos corais, não há derretimento das geleiras, não há extremos climáticos cada vez mais frequentes e malucos. Não pode ser o nosso planeta, claro. Ninguém parece perceber o maior e mais urgente problema enfrentado pela humanidade como um todo, não só hoje mas em toda a história. Nunca antes na história do nosso planeta vivemos um desafio assim – mas os políticos nem falam disso. É assustador que as pessoas que hoje disputam a presidência do nosso país não tenham preciosamente nada a dizer sobre mudanças climáticas globais.

No planeta deles os frequentes e trágicos desabamentos de encostas, as enchentes, são culpa da natureza, sempre dela que é fácil culpar. Não, não é por causa da destruição das florestas, que segura as encostas e regulariza o fluxo da água – só raramente alguém faz essa ligação tão óbvia. No planeta deles a seca cada vez maior em grandes regiões do país (inclusive, perturbadoramente, na Amazônia) é natural, e não tem nadinha a ver com mudanças climáticas. Nem pensar.

Para não ser injusto, uma das candidatas teve, sim, um envolvimento com a questão das mudanças climáticas globais. Por uma indicação eleitoreira, ela chefiou a delegação do Brasil na recente conferência de Copenhagen. Foi uma nulidade total e nem teria sido notada não fosse sua histórica declaração “O meio ambiente é, sem dúvida nenhuma, uma ameaça ao desenvolvimento sustentável e isso significa que é uma ameaça para o futuro do nosso planeta e dos nossos países”. Pensando bem, seria melhor se não tivesse tido envolvimento nenhum.

Um planeta ecologicamente cor-de-rosa

Em que galáxia ficará o planeta deles? Lá, não há perda de biodiversidade, não há espécies se extinguindo a cada dia. Lá só há boas notícias. O desmatamento da Amazônia diminuiu do último ano. Caiu para “apenas” uns 7 mil km2 por ano – pouquinho, mais que um Distrito Federal – depois de ter sido, por todos os anos anteriores, acima de 10 mil Km2 por ano. No planeta da candidata governista, foi por causa do esforço do governo. Mas no nosso, foi muito mais porque os compradores de carne brasileira no exterior passaram a ser muito mais exigentes com a procedência dessa carne.

No planeta onde eles vivem, nosso país tem uma “matriz energética limpa”. Nossa matriz energética é baseada principalmente em hidrelétricas, que tem impactos ambientais gigantescos e vida útil de poucas décadas mas, claro, fazem a festa das empreiteiras (ver minha crônica “Mais nem sempre é o melhor”, aqui em O Eco). O outro componente principal de nossa “matriz limpa” são os biocombustíveis. No nosso planeta, quando se considera o processo todo – incluindo o CO2 liberado da vegetação natural derrubada para plantar biocombustíveis (caso hoje do Cerrado), mais toda a energia utilizada para o plantio, a colheita, o refino e o transporte – os biocombustíveis produzem tanto ou quase tanto CO2 quanto os combustíveis fósseis (ver “A Nossa Escolha”, de Al Gore). Mas no planeta deles essa “solução” obsoleta ainda é anunciada como grande modernidade. No planeta deles, uma matriz ecológica verdadeiramente limpa não é baseada, como seria no nosso, em energia solar, eólica, geotérmica, das marés e por aí vai – todas partes ínfimas ou inexistentes da matriz energética brasileira.

Um planeta perdido diante do presente e do futuro

No planeta onde eles vivem o governo se gaba de ter tirado milhões de pessoas da miséria e levado outros tantos milhões para a classe média. Ninguém diz que esses números são calculados a partir da renda per capita das pessoas, e a renda per capita tende naturalmente a aumentar com a redução do tamanho das famílias. O Brasil, como vários outros países emergentes, tem sido beneficiado por causa do chamado “bônus demográfico” – ou seja, a tendência acentuada de redução do crescimento populacional por causa da queda de fertilidade nas últimas décadas.

Ao reduzir o denominador (número de pessoas por família), esse processo automaticamente aumenta a renda per capita. Essa queda da fertilidade foi maior nas classes sociais mais desfavorecidas (que tinham maior fertilidade antes), o que por si só levou a um maior aumento da renda per capita nessas classes. A “subida de classes” das pessoas é portanto em grande parte um artefato do bônus demográfico. A desaceleração do crescimento também levou a uma composição etária quase ideal da população, com o máximo de pessoas na idade produtiva. O Lula mais uma vez surfou num mérito que não foi dele, mas ninguém – nem mesmo seu opositor – fala nisso.

Que planeta bizarro o deles. Lá, fala-se toda hora em gerar empregos, e às vezes até se fala em uma tal de tecnologia. Mas ninguém fala da colossal oportunidade de geração de empregos que é desenvolver e executar medidas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Um mundo que consiga fazer isso terá que ser muito diferente do que nós conhecemos. Tudo vai precisar mudar – entre outras coisas, as cidades precisam ser completamente remodeladas, pensando menos nos carros e mais nas pessoas e transportes públicos, as construções novas precisam ser energeticamente inteligentes, milhões de construções antigas precisam ser reformadas para serem eficientes também, os modos de fato ecologicamente corretos de gerar energia precisam se tornar norma e não exceção, a distribuição de energia precisa se tornar infinitamente mais eficiente, a biodiversidade e os processos ecológicos do mundo precisam ser urgentemente socorridos e restaurados. Tudo isso constitui um imenso desafio tecnológico e tudo isso precisa de uma colossal quantidade de mão-de-obra, de todos os níveis de qualificação. É todo um mundo novo, e fazê-lo será o principal combustível da economia mundial nas próximas décadas, gerando centenas de milhões de empregos. Mas não no planeta dos nossos candidatos, claro.

Uma triste escolha

Será que esses dois extraterrestres que ocupam nossa telinha são iguais, meros espelhos um do outro? Eu acho que há uma diferença. Serra nunca foi ambientalista, não tem nem cacoete, as questões ambientais parecem ter pouca importância para ele. Mas Dilma, não se deve esquecer, foi o trator da Casa Civil que repetidamente passou por cima de Marina Silva para remover “entraves ecológicos” para as grandes obras. Ela teve um papel importante em um governo que dividiu o IBAMA para enfraquecer as resistências, que perdeu o trem da história em Copenhagen, que investiu como nunca contra a legislação ambiental, e que abusou de um discurso de “sustentabilidade” enganoso e vazio.

Por um lado, sabemos que não podemos contar muito com Serra. Mas pelo outro, sabemos perfeitamente que, nas lutas ambientais e pela conservação da natureza no Brasil, Dilma estaria, como sempre esteve, ativamente contra nós. Não devemos ter qualquer ilusão a respeito disso.

De qualquer forma, que triste escolha! Nossos políticos, a maior parte do tempo, são meros camaleões oportunistas oscilando ao sabor das estratégias dos marqueteiros. Quando conseguem apresentar algo parecido com um projeto para o país, só conseguem falar dos temas-chavões, como saúde, educação, emprego, déficit habitacional, sanemento. No planeta deles, claro, nenhuma dessas coisas depende das questões ambientais. As mudanças climáticas não afetam a propagação das doenças, a ecologia – como cada vez mais a ciência em geral – é um tópico secundário nas escolas, superpopulação não tem nada a ver com desemprego nem com déficit habitacional, nem qualidade da água com saneamento. Mas no nosso planeta, as mesmas questões ambientais que eles tanto desprezam afetam todas essas coisas.

O discurso dos políticos continua sendo completamente centrado na economia. A economia que eles concebem está num vácuo. É como se não houvesse limitações ambientais, como se o planeta não estivesse mudando como nunca antes, como se a biodiversidade e os processos ecosistêmicos não estivessem à beira do colapso. É como se – e este é o maior dos “ses” – nada dessas coisas importasse. Como se nada disso afetasse a economia, a qualidade de vida, a vida em si em todos seus aspectos, das pessoas por quem lhes cabe zelar.

Alguns políticos acreditam ingenuamente na mão invisível de Adam Smith; outros acreditam não menos ingenuamente nas dialéticas simplistas de Marx; outros tantos acreditam apenas em se dar bem. Mas como um todo, com poucas exceções como Al Gore, os políticos não percebem que o mundo mudou. Que o mundo de Adam Smith e de Marx, o do século 19, era imenso, subpovoado e sem as condicionantes atuais. Hoje, a economia não está mais no vácuo, e o crescimento a qualquer custo, que tantas desgraças causou, precisa ser substituído por uma nova visão de nossas relações com o resto de um planeta que ficou pequeno. Mais do que nunca é verdadeira a frase do economista Robert Triffin, “economia é um assunto sério demais para ser deixado nas mãos dos economistas”. Muito menos nas mãos dos políticos, infelizmente.

O abismo entre os interesses dos políticos e os da humanidade

Indo mais longe, podemos perguntar se não é o próprio sistema político que está em descompasso com o mundo atual. A meu ver, a democracia é um fundamento básico para um mundo melhor, e precisa ser protegida a todo custo. Mas a democracia anda precisando ser aperfeiçoada. Está se abrindo um abismo cada vez maior entre os interesses da população e os dos políticos. As pessoas querem ser felizes. Os políticos querem votos. A atividade política tornou-se profissional demais; os políticos manipulam as emoções de seus eleitores com todos os truques que a psicologia e o marketing já inventaram.

Um político fala num crescimento econômico eterno porque está condenado a prometer isso; se não o fizer seu rival o fará e se elegerá no lugar dele. Ele faz aos seus eleitores promessas de benefícios locais, que em questões ambientais tantas vezes se transformam em prejuízos globais e para todos. Ele usa os recursos naturais sem sabedoria porque precisa mostrar resultados em seu mandato, para ser reeleito, enquanto em questões ambientais tantas vezes a ganância do presente devora o futuro. Se o sistema político está cada vez mais desajustado às questões ambientais, está cada vez mais desajustado ao mundo. Quem sabe aqueles dois lá na telinha tenham belos projetos para o planeta deles, seja lá onde for. Mas como qualquer outro planeta, deve ser muito, muito diferente do nosso.

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