Vejo-me instado a escrever o texto abaixo porque trabalhei em Nova Friburgo até março de 2010, completando seis anos e três meses naquela cidade, onde atuei como um dos Promotores de Justiça responsáveis, dentre outras áreas, pela defesa do meio ambiente. Apesar das falhas estruturais que também nos atingem, tentei usar o processo judicial – instrumento que foi constitucionalmente reservado ao Ministério Público – para combater, dentro do possível, os loteamentos clandestinos e a invasão de áreas de risco, dois grandes vilões do meio ambiente natural e urbanístico.
Nesse período, reforcei as convicções abaixo externadas e concluí também que a Justiça e o processo não são instrumentos adequados para combater fenômenos sociais tão complexos e dinâmicos como aqueles relacionados à ocupação desordenada do solo. É preciso que se faça fiscalização séria, impessoal, técnica e, sobretudo, permanente nos locais, com atos de imediata executoriedade que imponham a retirada de pessoas, remoção de obras e reflorestamento de encostas – garantindo-se, obviamente, o acesso ao Poder Judiciário por parte daqueles que se sintam lesados em seus direitos (e não o contrário). Esta é a única forma de se reduzir a invasão e ocupação de áreas de risco – que, se não são a única causa de tragédias como esta, verificada na região serrana, talvez respondam como uns dos principais fatores do grande número de mortos.
O texto a seguir, portanto, é resultado da observação do que ocorre na prática e da reflexão que vim fazendo ao longo desse período. Dedico-o, com pesar, ao sofrido povo friburguense.
A Constituição brasileira de 1988 tem muitos acertos, mas, dentre os seus erros, talvez o mais grave tenha sido a instituição de Municípios significativamente autônomos, verdadeiros Estados dentro do Estado.
De forma ingenuamente otimista, o Constituinte criou uma espécie de federação que só se vê por aqui, onde os Municípios constituem entes políticos dotados de autonomia quase absoluta – que se costuma definir pela capacidade, que eles têm, de autogoverno (eleição direta dos prefeitos), autoadministração (administração dos problemas locais pela prefeitura, sem intervenção de qualquer outro órgão) e auto-organização (organização política por lei orgânica própria e produção autônoma de leis de competência local, pela Câmara de Vereadores).
A ideia pode parecer boa na teoria, mas a prática tem demonstrado o contrário. O povo não parecia preparado para se auto-organizar de forma tão direta, principalmente da forma que se vê em pequenos Municípios, quando repentinamente ganhou essa possibilidade, pelas mãos do Constituinte. E este problema se agravou com a pulverização de Municípios que ocorreu na década de 1990, antes da modificação das frouxas regras da Constituição sobre a criação de novos Municípios.
O fato é que o Brasil possui hoje mais de cinco mil e quinhentos Municípios, grande parte deles com população pouco numerosa e de baixo nível educacional, e com orçamentos obviamente insuficientes para atender a todas as funções que a Constituição, acreditando em sua autonomia, lhes confiou privativamente. São entes politicamente autônomos, geridos por prefeitos soberanos, quase imunes a controle administrativo e judicial, mas incapazes de atender à sua própria demanda. Autônomos, mas dependentes.
Para agravar a situação, a vigência da Constituição de 1988 vem mostrando que a função de fiscalização (necessariamente incômoda) pode se tornar incompatível com a busca por votos (necessariamente simpática), num país onde todos votam – porque são obrigados. Em ambientes muito próximos, como ocorre com a maioria dos Municípios, é natural que a segunda sufoque a primeira.
Isso, aliado à eterna falta de estrutura, explica porque não há fiscalização sobre diversas atividades ilícitas que prejudicam a sociedade, mas cujo combate compete aos Municípios. É assim com o vendedor ambulante, é assim com o bar barulhento, com o estacionamento irregular, com o loteamento clandestino, com a praia suja, com o esgoto a céu aberto. É assim com a invasão e ocupação de áreas de risco.
E, com o perdão pelo aparente pessimismo, continuará assim enquanto a autonomia municipal não for revista. Pois, ainda que a falta de estrutura fosse superada através do empréstimo de dinheiro (e força de trabalho qualificada) pelo Estado e União, permaneceria o problema político, que se pode resumir na máxima de que “não vou mexer com aquele que tem um voto para me dar”.
Enfim, o excesso de politização da Constituição de 1988 não se mostrou compatível com a realidade, nem tampouco com uma característica comum entre os brasileiros: a dificuldade de agir com impessoalidade.
Não se pretende, com isso, pregar o fim total da autonomia municipal; até porque, discussões jurídicas à parte, pode ser que alguns poucos Municípios, apesar das falhas e dificuldades, consigam funcionar assim, como ocorre com os mais populosos, onde as decisões políticas e funções administrativas conseguem se manter, ao menos em parte, dentro de uma esfera de alguma impessoalidade.
O que se quer é alertar para um problema sério da nossa estrutura federativa, que muitas vezes fica hipocritamente relegado ao esquecimento. Esta questão – a autonomia exagerada e o excesso de funções fiscalizatórias que os Municípios têm hoje – é uma questão que deve ser seriamente debatida por todos, para que decisões mais acertadas sejam tomadas por ocasião de eventual reforma política ou no caso de convênios entre a União, os Estados e os Municípios, que não devem se limitar à mera transferência de recursos orçamentários, como tem ocorrido.
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O presente texto nos faz refletir como a politica de um país ajuda na deterioração do meio ambiente. A politicagem exercida pela classe politica, principalmente por municípios em que a vereança apoiada por deputados, chefes de policia e grandes empresários trata a cidade como feudo, resultando na incompetência dos órgãos municipais e estaduais de fiscalização, cuja a interferência direta dos citados acuam os responsáveis por tais fiscalizações, pois estes possuem interesses escusos, por exemplo, por uma determinada área ou empresa, na troca de algum benefício.