As propostas apresentadas pelo deputado Aldo Rebelo, louvadas pelos representantes do agronegócio brasileiro como se fossem a salvação da lavoura, são filhas diletas da falta de capacidade de negociação e diálogo. Não de um ator ou outro deste teatro de operações e debates, mas de todos. Quando o bom senso sai pela porta dos fundos ou se enfia embaixo da mesa, o non sense toma conta do cenário e vira o seu protagonista.
Eis que depois de ocupar mais de 80% do que originalmente foram as florestas que formavam a Mata Atlântica, logo após ter ocupado mais de 60% do Cerrado brasileiro e enquanto se expande em ritmo acelerado mata adentro da Floresta Amazônica, o poderoso setor agropecuário brasileiro, aclamado com razão parcial como um sucesso absoluto de produção e geração de divisas, apresenta-se ao público como perseguido e ameaçado pelos restinhos de ecossistemas naturais que a politicamente frágil legislação ambiental logrou proteger.
Resguardadas as devidas diferenças, é inevitável recordar os momentos que antecederam a abolição do trabalho escravo no Brasil – ou pelo menos dos instrumentos jurídicos e políticos que o legitimavam – quando uma parte dos produtores rurais bradava que sem os escravos o Brasil rural estaria falido e não haveria quem produzisse os alimentos para nossas mesas.
O argumento e o discurso são recorrentes. A estratégia também. A afirmação, repetida à exaustão, de que a lei atual transforma em criminosos 90% dos agricultores do país é tão alarmista quanto falsa. Em nome de uma suposta defesa dos pequenos e médios agricultores, que estariam sendo sufocados economicamente pelas agruras da lei, difundem informações falsas e estatísticas deturpadas para justificar o injustificável. Os principais líderes desta campanha optam por lançar uma cortina de fumaça sobre a opinião pública, visando unicamente derrubar a lei que eles nunca cumpriram, para que, desse modo, possam escapar de suas responsabilidades mínimas e perpetrar sua impunidade.
“A ideologização do debate, com o deputado vermelho se apresentando como libertador da pátria do julgo dos verdes internacionais e uma parcela dos verdes propondo a imutabilidade do código, por ser contra o modelo agrícola exportador, não nos levará a lugar algum.” |
A afirmação de que o cumprimento do Código Florestal terá como resultados a ampliação do êxodo rural e a favelização dos agricultores não tem rebatimento na realidade. O Brasil presenciou o seu período de maior êxodo rural entre as décadas de 60 e 80 do século passado, quando cerca de um terço da população rural migrou para áreas urbanas. Os principais motivos dessa migração em massa foram a expansão da fronteira agrícola, o modelo de urbanização adotado no país, que incentivava o crescimento das médias e grandes cidades, e a estratégia de modernização da agricultura, que incentivava as culturas de exportação e a produção mecanizada. Foi sob a ideia de que, “se poluição representa progresso, seja bem-vinda a poluição”, que a população migrou do campo para as cidades, não sob o rigor das leis ambientais.
Mas, e quanto à afirmação de que a legislação ambiental brasileira é moderna e perfeita, e por isso não deveria ser alterada? A engenharia ensina que as mais robustas, seguras e modernas estruturas, como edifícios e viadutos, devem ser flexíveis o suficiente para enfrentar ventos e tremores, movendo-se, porém, não se rompendo. Ao recusar a discussão sobre alguns aspectos do Código Florestal e insinuar que o agronegócio como um todo representa apenas danos para o país, uma parcela das lideranças ambientalistas contribui para o esgarçamento em que estamos metidos agora.
A ideologização do debate, com o deputado vermelho se apresentando como libertador da pátria do julgo dos verdes internacionais e uma parcela dos verdes propondo a imutabilidade do código, por ser contra o modelo agrícola exportador, não nos levará a lugar algum. Perderá a agricultura do país, tanto pelos impactos decorrentes do não cumprimento ou da flexibilização exagerada das restrições ambientais; perderá a nação, pela impossibilidade de cumprir os acordos internacionais; perderá a população, pela degradação dos serviços ambientais dos quais depende sua qualidade de vida.
Nem a agricultura brasileira é a única grande vilã do meio ambiente brasileiro, nem os ambientalistas, no seu conjunto, estão a serviço do capital internacional para impedir o progresso do país. Para que se materialize a sustentabilidade almejada, é preciso reconhecer e valorizar, de maneira equilibrada e racional, as vertentes econômicas, ambientais e sociais.
A proposta apresentada pelo deputado Rebelo e amplamente apoiada pelo agronegócio não vai salvar a lavoura. Sequer vai representar um refresco para o dia a dia dos milhões de pequenos e médios agricultores brasileiros, espremidos entre a falta de crédito e assistência técnica e as demandas do mercado. Certamente amenizará os problemas de alguns poucos grandes proprietários, que acumulam passivos ambientais imensos e não demonstram nenhuma vocação para cumprir as leis, sejam quais forem. Não por falta de informação ou alternativa, mas por ainda apostar em um modelo atrasado de produção rural, que prioriza aumento de área plantada em vez de aumento de produtividade.
O falta de senso se completa quando se analisa com lupa a proposta colocada sobre a mesa. Os principais argumentos clamados para justificar alterações no Código Florestal são a sua idade (embora os questionamentos maiores sejam mesmo sobre as alterações mais recentes), a pouca clareza em algumas diretrizes e a absoluta falta de critério científico para a determinação da porcentagem de Reserva Legal e da largura das Áreas de Preservação Permanente. Pois bem, a proposta em discussão consegue ser muito mais confusa do que o texto original e também não se baseia em nenhum critério científico para definir porcentagens e larguras, embora proponha sua ampla redução. De contrabando, ainda anistia quem desmatou.
O fato, real, doloroso e concreto, é que o Código Florestal brasileiro nunca foi cumprido em sua integridade. Esta lei sempre foi solenemente ignorada pela maior parte do agrobusiness nacional, assim como pela maior parte da sociedade brasileira. O Estado brasileiro quase nunca esteve presente no meio rural para fazer a extensão ambiental e florestal como seria de se esperar em um país que deve seu nome a uma árvore. E, nas poucas vezes em que esteve presente, o pacote tecnológico e a orientação para assegurar a posse e a ocupação da terra previam justamente o desmatamento e a “limpeza” do terreno.
No presente, iniciativas de grande visibilidade e impacto, como o Pacto Pela Restauração da Mata Atlântica, o Diálogo Florestal, a moratória da soja e os compromissos assumidos na cadeia da carne começam a surgir como aglutinadoras e mobilizadoras da sociedade. Partindo da premissa de que, se as áreas protegidas nas propriedades rurais e os serviços ambientais nelas produzidos são fundamentais para toda a população, é sensato, racional e justo que os custos pela sua proteção e recuperação sejam compartilhados entre todos.
Se, por um lado, a Constituição Federal estabelece claramente a função social da propriedade, intimamente associada à função de proteção ambiental, por outro é coerente que a sociedade, beneficiária desta função, recompense o proprietário por estes serviços. Em um futuro cada vez mais próximo, não será apenas de carne, grãos, leite e produtos hortifrutigranjeiros que viverá a propriedade rural. Parte da sua renda virá também dos serviços ambientais que os ecossistemas naturais existentes nelas ofertarem, como armazenamento de água, sequestro de carbono, amenização do clima e proteção dos solos. Mas não haverá serviços ambientais sem ecossistemas protegidos. Para isso serve as leis ambientais, como o Código Florestal.
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