Entre 4 e 5 de abril – Pouco mais de cinco da manhã. Deixo São Paulo rumo a Rio Branco. O roteiro inicial previa apenas uma passagem pela capital acreana, onde foram agendadas entrevistas sobre fogo na Amazônia. No entanto, decidi me aventurar pelas estradas que cortam a floresta e ligam Rio Branco a Cuzco, no Peru. Pela frente, um trecho da rodovia Inter-oceânica, cuja construção vem sendo tocada, entre outras empresas, pela Camargo Corrêa, investigada no Brasil por supostos crimes financeiros e doações ilegais a partidos políticos. A viagem promete.
6 de abril – Rumo ao Peru. A viagem saindo de Rio Branco é feita quase toda por terra, em táxis que funcionam como lotações. Tudo deve ser muito bem sincronizado para que nada dê errado. De Rio Branco até Assis Brasil, na fronteira, é preciso pegar duas lotações, uma até Brasiléia e depois outra até a fronteira. De lá, outra lotação faz o caminho Iñapari-Puerto Maldonado, onde há opção de vôos ou ônibus para Cuzco.
Por todo caminho, pouco se vê de mata preservada. Historicamente, 75% dos desmatamentos na região amazônica ocorreram ao longo de rodovias pavimentadas. Assim foi também com a Belém-Brasilia (BR 153) e com a Cuiabá-Porto Velho (BR 364), por exemplo. Por isso organizações não-governamentais são contra a aprovação da MP 452, que libera de licenciamento prévio reformas e pavimentação de estradas na Amazônia. Com a Interoceânica aparentemente não será diferente. Em vez de árvores, muito pasto e gado formam a paisagem.
Do lado peruano faltam poucos quilômetros da rodovia a receber o asfalto. Por aqui, impera o clima de otimismo de peruanos e brasileiros com a quase finalização da Inter-oceânica. Parece que ninguém está preocupado com o fato de a Camargo Corrêa estar envolvida em ilegalidades ou com o fato de o custo da obra, previsto inicialmente para cerca de 500 milhões de dólares, ter subido para quase 900 milhões após a Intersur Concesiones S.A. (construtora formada pelas brasileiras Camargo Corrêa, Andrade Gutiérrez e Queiroz Galvão e responsável por parte da obra) ter sido aprovada. O consórcio nega qualquer irregularidade e o povo parece acreditar. Exportar a produção de grãos peruanos para o Brasil, via rodovia Inter-oceânica, é só o que se fala por aqui.
7 de abril – Por conta de uma série de atrasos na jornada terrestre, cheguei em Puerto Maldonado muito tarde e tive de pernoitar na cidade. Ruim por um lado, bom por outro. Quando parti, não podia imaginar quanta gente interessante encontraria pelo caminho. Jantei com um garimpeiro chamado Cláudio. Natural do Nordeste do país, até esses dias estava em Porto Velho, capital de Rondônia. Lá, vivia da extração ilegal de ouro no Rio Madeira. Já tão castigado por anos de exploração, o rio também sofre hoje com a encrencada construção das Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.
Entre uma “papa” (batata, em espanhol) e outra, Cláudio, que não me disse seu nome todo, me contou o esquema de trabalho no Rio Madeira, das dragas de mineração que funcionam 24 horas por dia destruindo o leito do rio e da quantidade de lama que se forma com a atividade contínua em uma só área. Segundo ele, o Rio Madeira, que já enriqueceu muita gente, “não dá mais nada”. Hoje, os trabalhadores não conseguem tirar mais que 80 gramas de ouro ao mês por lá. Cada grama de ouro é vendida por cerca de 60 reais em Rio Branco. A parcela pode parecer pequena, mas significa apenas os 5% divididos entre os trabalhadores, do total extraído no mês. O resto fica com o dono da draga.
Por conta deste declínio, muitos garimpeiros estão se mudando para Puerto Maldonado, em busca do ouro de outro rio, o Madre de Dios. Lá a promessa é de até 400 gramas de ouro por dia, no total. No caminho para o aeroporto, um taxista peruano chamado Alex me contou que, por conta da contaminação por mercúrio causada pelo garimpo do ouro no Madre de Dios, a pesca se tornou impraticável na região. Segundo ele, todas as semanas Puerto Maldonado tem de comprar cerca de duas toneladas de peixe do Brasil para abastecer a cidade de pescado. Me perguntei quanto tempo vai levar até que o nosso Madeira também fique assim.
8, 9 e 10 de abril – Cuzco, Valle Sagrado e Machu Picchu. A beleza natural e cultura da região de Cusco, com sua diversidade geográfica, biológica e manutenção das tradições, é inegável e muito bem explorada por seus moradores. Haja visto o número de agências de ecoturismo que andam pipocando por lá. Mas por trás da propaganda, a região esconde suas chagas. Durante os passeios pelo Valle Sagrado, onde estão várias das ruínas incas, me chamou muito a atenção o fato de a árvore predominante ser o eucalipto. Por aqui, o que se conta é que os eucaliptos chegaram por volta de 1880, vindos da Austrália para cobrir o vazio deixado por populações coloniais, que dizimaram a vegetação nativa para produção de lenha.
Depois de algumas pesquisas, descobri que o uso indiscriminado de espécies regionais, como o chachakomo (Escallonia resinosa), waranway (Tecoma sambucifolia) e o “Qantu” (Cantua buxifolia), por exemplo, continua a todo vapor. Ambientalistas da região, como o biólogo Oscar A. Olazábal, nascido no povoado de Ollantaytambo, há muito alertam o problema. Espécies como o waranway são usadas para confeccionar os bastões de caminhada vendidos por cinco a dez soles (a moeda peruana) para turistas. Atualmente, a planta é usada por mais de vinte povoados para este fim. Ainda bem que não comprei um dos tais bastões.
Segundo o engenheiro José Agurto Belloso, do Instituto de Manejo de Água e Meio Ambiente (IMA) do Governo Regional de Cusco, a escassa cultura em gestão ambiental, de governantes e população, é importante fator na deterioração dos recursos naturais, não só no que diz respeito à vegetação. Em um artigo sobre política ambiental para região de Cusco, Belloso enumera os problemas enfrentados por lá. Entre eles estão a acentuada conversão de florestas em terrenos agrícolas, erosão do solo pelo mal uso e exagerada fragmentação (os minifundios), contaminação das águas pela falta de tratamento de esgoto, contaminação do ar pelo elevado número de carros velhos das grandes cidades e disposição inadequada de resíduos sólidos, por exemplo.
Apesar de tantos problemas, muitos à vista de todos, a impressão que tive é que ninguém nota ou dá importância a eles. Muito menos os turistas, interessados somente no que a região tem de bom para oferecer.
A boa notícia é que, enquanto estive no país, o governo peruano decretou a ampliação da Reserva Nacional de Paracas em quase 66 mil hectares. Abrangendo parte da costa sul peruana, a reserva abriga 114 sítios arqueológicos e tem 1.543 espécies de fauna e flora registradas. Com a ampliação, uma área de 49 mil hectares de praias e costas será anexada, além de duas outras ilhas, que compreendem 16 mil hectares. Segundo o ministro do Meio Ambiente do Peru, Antonio Brack Egg, a medida vai se concretizar até o final do ano. Ah, sim, este Ministério ainda é bem novinho. Foi criado no início do ano passado.
13 a 17 de abril – Voltei a Rio Branco nos dias em que o rio Acre alcançou seu maior nível. A enchente está castigando muitos moradores e o governo busca ações corretivas emergenciais ao problema. Inevitável não lembrar de Santa Catarina. Assim como no estado do outro extremo do país, problemas ambientais intensificaram as conseqüências de um evento natural extremo. Ocupação de áreas sabidamente alagadiças, despejo irregular de lixo e dejetos nos rios e supressão da mata ciliar são alguns deles. Mas ninguém ouve falar disso por aqui.
Os jornais estampam a tragédia, o drama dos desabrigados, mas nada sobre a questão ambiental. A única coisa que vi sobre o assunto nos dias que estou por aqui foi o editorial de um dos jornais acreanos, que alertava para a questão, mas pouca coisa. Curioso, para um estado que propagandeia ser o “povo da floresta”. Aliás, não sei em que medida eles são realmente o povo da floresta.
Claro que não descarto as boas ações em prol do meio ambiente que são feitas, mas também notei como muito disso é só discurso. No dia 16 visitei uma fazenda considerada modelo em manejo de pasto pela Embrapa. O dono é um mineiro e quase toda família possui terras no Acre. Sua propriedade é parceira da Embrapa há muitos anos e serve de local para que o órgão desenvolva parte de suas pesquisas. Ali a renovação do pasto não é feita com fogo há décadas. Por tudo disso, fui para a entrevista com o dono da fazenda ansiosa por uma posição favorável ao meio ambiente. Ledo engano! A questão é econômica mesmo.
18 de abril – Hoje voltei para São Paulo. No carro, no caminho de volta para casa, olhava as luzes da cidade, o mar de carros, a selva de concreto, e pensava nas paisagens extremamente opostas que em apenas algumas horas havia visto. Esta é a minha paisagem cotidiana. Até a próxima viagem.
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