O Caminho da Floresta Atlântica não é das trilhas mais procuradas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Uma pena, pois ao contrário das outras coleções botânicas, esta área de visitação não precisou ser construída artificialmente. Bastou abrir uma passagem ao longo da encosta de floresta nativa que margeia o Parque para criar o espaço de exibição natural do ecossistema típico da cidade e de um bom pedaço do país.
A trilha oferece ainda outro aspecto educativo. Quem chega ao fim do passeio recebe uma aula sobre a negligência nacional na gestão dos espaços públicos. A impressão que se tem é que a caminhada nos conduziu para fora do Jardim Botânico. Mas não. A série de barracos mal acabados e o capinzal que cresce atrás deles, o campo de futebol de terra de um clube comunitário, a bela casa com garagem e dois carros estacionados, tudo isso está localizado dentro do terreno do próprio Jardim Botânico, área da União que deveria ser destinada apenas ao estudo e conservação ambiental.
Há no mínimo 589 construções ocupadas irregularmente na área do Parque. Mas não se espante se você já visitou várias vezes o aprazível complexo botânico criado pelo rei D. João VI em 1808 e nunca reparou nessa enormidade de invasores. É que pouca gente sabe que o Jardim Botânico não se limita à área de visitação, chamada oficialmente de “arboreto”. Ao redor dele, estendem-se 83 hectares de floresta nativa que a instituição tem o dever de conservar, nos bairros do Horto, Jardim Botânico e Gávea. É aí que mora o problema.
Parte das casas foi construída no início do século passado, para abrigar funcionários do Ministério da Agricultura (ao qual o Jardim Botânico era vinculado) e da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae). Com o tempo, foram herdadas por suas famílias ou repassadas informalmente para outras pessoas. Aproveitando-se do descaso federal, os moradores passaram a ampliar suas “propriedades” para abrigar familiares. Constroem garagens e arrumam um espacinho para trabalhar ao lado de casa, numa oficina mecânica ou de marcenaria. Além da expansão das casas originais, foram erguidos mais barracos, casas médias e ricos casarões em locais onde antes só havia mato.
Saldo atual: apenas 19 funcionários do Jardim Botânico residem no terreno. O restante, algo em torno de 2 mil pessoas, não tem nada com o Parque, mas desfruta do privilégio de morar em bairros nobres da Zona Sul, cercados de verde, em imóvel que não é seu e sem pagar um tostão.
A instituição tem o direito de impedir a expansão das casas, mas para retirar os que já se instalaram, só apelando à Justiça Federal. Desde 1986, mais de 220 processos de reintegração de posse movidos pelo Jardim Botânico se arrastam sem solução em Brasília.
Abertas floresta adentro, estradas de terra conduzem a pequenas vilas onde os terrenos crescem pelo livre arbítrio de cercas e arame farpado e os casebres se sustentam à base de telhas de caixa d’água, tábuas de compensado, tijolos aparentes, lonas e tecidos. O material é trazido pela mata ou escondido nos carros, para driblar a fiscalização nos dois portões de acesso às ocupações. O ambiente estava tranqüilo no dia em que fui conhecê-las. Por todos os lados, só o que se vê é o verde, só o que se ouve é o barulho alto do rio dos Macacos, que corre por ali e mais abaixo cruza o Parque. Encontrei um garoto de 11 anos com uma raquete de tênis na mão. Perguntei se conhecia o rio. “O da cachoeira? Claro!”. Passa bem atrás da casa dele. Para as crianças, conviver com a floresta é uma diversão. “Levo sempre banana para os macacos. Eles vêm comer na minha mão”. Outra moradora não foi tão receptiva. Afirmou “não estar autorizada” a permitir a passagem até o rio, e a conversa se encerrou quando seu cachorro preso começou a se irritar com minha presença.
Também há ruas de asfalto, onde as casas são de bom tamanho, bem cuidadas, com jardim, piscina e carro na garagem. Datam, no máximo, da década de 80. Nos últimos anos, as encostas de floresta que ficam atrás da rua Major Rubem Vaz, na Gávea, estão sendo invadidas por casas amplas, de arquitetura caprichada, varanda e tudo o mais (foto). A elite carioca também tira sua casquinha da área pública do Jardim Botânico. No Condomínio Canto e Melo, parte alta da Gávea, duas mansões estão avançando sobre os limites do Parque.
“Não somos invasores”, diz Emília Maria Souza, presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Horto (AmaHorto), que representa todos os habitantes irregulares do Jardim Botânico. Filha de um ex-funcionário do Ministério da Agricultura, argumenta que as casas foram herdadas ou ocupadas por convite de antigos diretores do Parque. “Principalmente durante a ditadura, que foi uma época de benesses. Davam autorização para construir, até para melhorar o espaço, porque ali era só um pântano e eucaliptos, tinha cobra, tinha sapo”. Emília defende a regularização fundiária das propriedades, por meio de concessão de uso. “A única alternativa de remoção seria para uma área próxima, no Horto. Mas não existe um terreno assim”, afirma.
“Esse negócio de convite é papo furado”, rebate o engenheiro ambiental Carlos Gabaglia Penna, conselheiro da Associação de Moradores e Amigos da Gávea (AmaGávea). “A instituição não tem poder para convidar ninguém. Não há nenhum documento registrando isso, e se tiver vamos processar o dirigente que convidou. E quanto às famílias de ex-funcionários, como se o Fernando Henrique, acabado o Governo, quisesse continuar morando no Palácio da Alvorada ou doasse o terreno para funcionários. O que acontece lá é invasão sim, ocupação insidiosa protegida por favores de funcionários ou ex-moradores”.
E defendida por políticos. Emília, a presidente da AmaHorto, é irmã do vereador petista Édson Santos. Na época da eleição, no ano passado, várias casas exibiam faixas de apoio ao então candidato. A oportunidade de retribuir não tardou. Em novembro, uma investida do Ibama para derrubar duas garagens e uma oficina mecânica erguidas sem autorização foi frustrada pela intervenção de Édson Santos. “Aquela área tem uma atração eleitoral muito grande”, diz o deputado federal Fernando Gabeira, antigo defensor do Jardim Botânico. “A maioria das invasões nos últimos anos teve a cobertura de políticos de esquerda”.
Não bastasse a irregularidade fundiária, a crescente ocupação humana perturba o ambiente natural de várias formas. Casas foram construídas na faixa marginal de proteção do rio dos Macacos, forçando-o a desviar seu curso, provocando deslizamentos de terra, assoreamento e enchentes. Em sua passagem pelas vilas, o rio recebe bastante lixo. Do lado da Gávea, as casas mais recentes lançam seu esgoto diretamente sob o solo, fora das redes de coleta, ameaçando o lençol freático.
Carlos Gabaglia Penna lembra que a ocupação da área atrapalha o trânsito da fauna entre a floresta do Jardim do Botânico e suas vizinhas, a da Tijuca e a do Parque da Cidade. Além disso, os bichos tornam-se alvo de predadores nada naturais: os gatos e cachorros criados pelos moradores. A caçada costuma acontecer à noite, quando os animais da floresta descem para a área de visitação em busca de comida. Pacas, ouriços, gambás, cobras, lagartos, caxinguelês e macacos são presenças constantes no arboreto. Até um tamanduá foi visto por ali. Celso Bredariol, diretor do Jardim Botânico, conta que um filhote da paca já foi estraçalhado por um cachorro e vários caxinguelês são vítimas dos gatos, que não resistem a um roedor.
E há as casas que se localizam dentro do arboreto. São seis, bem disfarçadas dos olhos visitantes. Estas, além da ameaça à fauna, atrapalham o Jardim Botânico em sua função primordial. “O arboreto foi feito para introduzir plantas que você tem interesse de identificar, ou para proteger espécies ameaçadas, produzindo mudas. Essas casas estão se interpondo a coleções. Sem elas, o espaço seria melhor ocupado”, diz Celso Bredariol.
Mas ele se mostra otimista. “Hoje a situação está sob controle”. Garante que a atual administração do Jardim Botânico, presidida há pouco mais de dois anos por Liszt Vieira, está finalmente reagindo, depois de décadas de omissão e até conivência. Com a ajuda do Ibama, vêm aplicando multas e botando abaixo puxadinhos e garagens. Recentemente, demoliram o vestiário e um campo de bocha do Clube Caxinguelê, aquele que fica na saída do Caminho da Floresta Atlântica. Eles tinham sido construídos em cima do Aqueduto da Levada (foto), uma obra de 1853 que está abandonada, coberta de mato e cheia de rachaduras. Até junho, o Jardim Botânico vai fazer a área de visitação crescer 5 mil metros quadrados na direção ao Aqueduto, que será restaurado. Um novo caminho será aberto, com bancos para observação e uma coleção de espécies em extinção ou um Jardim de Beija-Flores, a decidir. O clube e os casebres, por enquanto, permanecem, enfeiando a paisagem e lembrando o quanto o Parque ainda poderia avançar antes de completar 200 anos.
O engenheiro agrônomo Luiz Antonio da Silva está coordenando a recuperação da área e diz que outros 2 mil metros quadrados serão incorporados ao Jardim Botânico até dezembro. O novo projeto paisagístico vai ligar o caminho do Aqueduto ao que hoje é um estacionamento de funcionários, com novas aléias e o preparo do solo para mais espécies da flora. Para isso, conseguiram demolir uma casa no ano passado. Mas sobrou outra, com jardim e piscina. Luiz Antonio explica que ela foi incorporada na nova estratégia da diretoria contra os invasores. Em vez de deixá-los em paz, longe da vista dos visitantes, a idéia é tomar-lhes cada centímetro do entorno. A casa será circundada por duas novas aléias do Jardim Botânico. “Vamos colocar o problema em evidência, trazendo o público para a área. O morador vai se sentir num zoológico”, diz Luiz Antonio. O morador, no caso, é um “primo distante de um ex-funcionário falecido há décadas” que se aproveitou quando a casa vagou.
A tática “os incomodados que se retirem” corre o risco de sair pela culatra. Para dar certo, os invasores teriam que se sentir incomodados com sua situação. Se não se sentiram até hoje, dificilmente uma caprichada jardinagem em volta de suas casas é que vai constrangê-los.
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