Reportagens

Quando um parque fica caduco

Juiz federal do Paraná considera que parque perdeu prazo de validade porque não indenizou seus moradores em cinco anos

Redação ((o))eco ·
28 de abril de 2010 · 15 anos atrás
Lagoa azul, um dos pontos do arquipélago fluvial no rio Paraná. Foto: Erik Caldas Xavier/Coripa.

Uma decisão inédita da Justiça Federal ameaça abrir mais um perigoso precedente a parques e reservas. Desta vez, o alvo foi o Parque Nacional de Ilha Grande, um conjunto de cerca de 200 ilhas ao longo de 78 mil hectares no rio Paraná, entre o estado de mesmo nome e Mato Grosso do Sul. O decreto de criação da unidade, de 1997, foi declarado caduco pelo juiz Nicolau Konkel Junior, da Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba, no dia 8 de abril. A medida atende uma ação civil pública movida por colônias de pescadores que se dizem prejudicadas com a existência do parque. A reclamação não chega a ser uma novidade num país que escolhe questionar a dedo as áreas destinadas à conservação, que não protegem nem 10% do seu território. Mas há problemas maiores por trás dessa história toda.

O juiz interpretou que o parque sequer vale no papel porque não houve desapropriação dos moradores da área no prazo de cinco anos, conforme determina o artigo 10 do decreto 3.365/41. No mesmo período, também não foi implantado seu plano de manejo. “Em 32 anos trabalhando no Ibama, nunca vi uma unidade de conservação com plano de manejo pronto em cinco anos”, lembra a ex-procuradora do órgão, Sonia Wiedmann.

O entendimento puro e simples de que sem a efetiva desapropriação a criação do parque foi inviabilizada não levou em consideração a necessidade de proteção da área. “O juiz entendeu que o decreto de criação do parque não é um ato jurídico acabado, só estará perfeito com a regularização fundiária cumprida. E ele tem razão nisso. Mas não levou em conta a importância do meio ambiente, só se apegou ao controle administrativo. Isso me preocupa muito porque temos um percentual expressivo de unidades de conservação nesta mesma situação”, explica Wiedmann.

A relevância do arquipélago fluvial que escapou da inundação de usinas como Itaipu e Porto Primavera é imensa. A área é fundamental para a composição de um corredor de biodiversidade no rio Paraná, desde o Parque Nacional do Iguaçu até o Pontal do Paranapanema. Além da existência de diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, como o cervo-do-Pantanal, a onça pintada, a anta e o tamanduá bandeira, as ilhas do rio Paraná contêm sítios arqueológicos e históricos úteis para a compreensão da ocupação humana no continente.

Implementação dificultada

Lagoa São João. Foto: Erik Caldas Xavier/Coripa

O plano de manejo foi publicado em 2008, mas implementá-lo não tem sido fácil aos dois únicos analistas ambientais lotados no parque. Eles realizam os trabalhos administrativos a partir de uma sede no município de Guaíra (PR), no extremo sul da unidade. Tratam de mil processos administrativos de compensação de reserva legal. Também analisam pedidos de autorização para licenciamentos ambientais no entorno da unidade, criação do conselho consultivo, fomento a pesquisas e uso público.

Atendem demandas do Ministério Público Federal (MPF), que cobra a desocupação das 225 residências ainda existentes nas ilhas e a retirada de apicultores que mantém 12 mil caixas de abelhas na unidade de conservação. “O parque fica localizado na fronteira com o Paraguai, o que torna nossas operações de fiscalização mais perigosas, precisando sempre requisitar proteção da Polícia Federal e Força Nacional de Segurança, pois a região é usada por contrabandistas e traficantes”, relata o chefe do parque, Romano Pulzatto Neto.

São 120 quilômetros de extensão de norte a sul. “Por esta condição geográfica, incêndios são comuns na história do parque. Todo ano ocorrem em maior ou menor proporção”, diz. A vegetação alagadiça no interior das ilhas atrapalha ainda mais o combate às chamas. Essas áreas abrigam lagoas que são constantemente invadidas por pescadores e caçadores. “Eles não deixam ninguém nem encostar [nas ilhas], montar acampamento, como precisamos”, diz Ernesto Pescador, ex-presidente da colônia Z-8, de Novo Mundo (MS), afastado porque é pré-candidato a deputado estadual. Ao longo do rio Paraná, mesmo com o parque, a pesca é permitida.

Briga pela indenização

Banhados como esse fazem de Ilha Grande um local de alta biodiversidade. Foto: Erik Caldas Xavier/Coripa.

No final dos anos 70, a região era cotada para abrigar a usina hidrelétrica de Ilha Grande. Como estava previsto o alagamento do arquipélago fluvial, o Incra concedeu mil títulos às famílias que estavam nessas ilhas, que foram reassentadas fora do arquipélago. Mas o projeto da usina foi abandonado anos depois. “Quando o parque foi criado, as pessoas cobraram essas indenizações do governo, que tem sido lento”, explica Pulzatto Neto.

Em 2006, a então superintendente do Ibama no Paraná, Andrea Vulcanis, tentou agilizar o processo de regularização fundiária lançando um edital para que ilhéus e proprietários rurais da região pudessem compensar a falta de reserva legal de suas áreas dentro do Parque Nacional de Ilha Grande. Mas os trabalhos foram interrompidos em 2007 por causa da criação do Instituto Chico Mendes (ICMBio), o que demandou transferência de diversas atividades tocadas por equipes do Ibama na capital, Curitiba, para os poucos analistas lotados nas unidades de conservação. “O processo voltou a parar depois que a Advocacia Geral da União (AGU) observou que muitos ilhéus não tinham cumprido o acordo com o Incra. Os títulos não estavam todos quitados, estavam irregulares, por isso o procurador da AGU suspendeu o edital também”, relata o chefe do parque.

Sonia Wiedmann, ex-procuradora do Ibama, conhece bem esse problema. “No Parque Nacional da Bocaina (RJ/SP), os títulos são da época do Brasil colônia. Isso é um tremendo complicador. Eles vão ter que provar que os títulos são válidos. Se for isso mesmo, o juiz não poderia ter falado em caducidade”, observa Wiedmann.

Em setembro de 2009, o Incra prometeu que iria fazer um levantamento da situação dos títulos considerados irregulares e comunicá-los à administração do parque nacional, mas até agora o trabalho não foi concluído. “Desde o lançamento do edital para regularização das reservas legais, em 2006, a comunidade nos pressiona, inclusive com ameaças de invasão à sede do parque, para que o edital seja retomado. O que aconteceu agora foi a tomada de uma medida radical – o cancelamento do decreto de criação do parque – ação que pode ser um tiro no pé”, diz Pulzatto Neto.

ICMS Ecológico

Cervo-do-Pantanal no parque nacional. Foto: Erik Caldas Xavier/Coripa.

Segundo o ICMBio, 12 municípios do Paraná e de Mato Grosso do Sul recebem recursos do governo porque detém áreas do parque nacional em seus territórios. De acordo com documentos do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), o município Icaraíma recebeu só em 2010 cerca de R$ 122 mil só de ICMS Ecológico por causa do parque. Guaíra ganhou de R$ 512 mil, Altonia mais de R$1,2 milhões e São Jorge do Patrocínio ainda mais, R$ 2,8 milhões.

O chefe do parque assegura que reuniões de conciliação têm ocorrido, com propostas reais de indenização, mas os ilhéus não comparecem ou não aceitam os valores sugeridos. “Alegar que nada foi feito nesse período é irreal. E o juiz [que deferiu a ação de anulação do parque] não considerou nada disso”, diz.

“Pedimos anulação do parque porque tiraram todo mundo e não pagaram os ilhéus”, diz Ernesto Pescador. Ele não soube informar quantas pessoas saíram do arquipélago, mas garante que todos têm título, diferentemente do que diz o atual presidente da colônia Z-8, Dirceu Arrigo. “Tem quer ver com o advogado como é que a gente vai fazer”, diz ele, que não tem o documento algum do Incra. Sempre mencionando seu advogado, ele justifica o pedido de anulação do parque. “Primeiro porque não existia documento de criação de parque nacional. O advogado diz que não tinha decreto, só falatório”, diz. Ele não sabe o que pode acontecer daqui para frente. “Temos que sentar e conversar, ver o que é melhor para a área e para o pescador”.

As consequências da decisão de 1ª instância também são ainda imprevisíveis na opinião de Eduardo Ortt, presidente da Associação os Ilhéus Atingidos pelo Parque Nacional da Ilha Grande e Área de Proteção Ambiental da Ilha Grande (APIG), que reune 840 famílias. “Desde a criação da APIG estamos lutando por indenização aos moradores. O ideal é que o poder público indenize as pessoas de uma vez. Se a extinção do decreto for adiante, que pelo menos haja uma lei complementar para negociar compensação de reserva legal”, sugere Ortt, que explica que muitos dos antigos ocupantes das ilhas estão hoje descapitalizados. No meio dessa discussão, vale lembrar que tramita desde 2005 no Congresso Nacional um projeto de lei do deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), que além de tornar a criação de unidades de conservação mais complicada – através de lei específica – condiciona sua criação à existência de dotação orçamentária que assegure as indenizações pertinentes.

Segundo Wiedmann, já existe uma norma de criação de decretos da Casa Civil falando sobre a necessidade de haver previsão de fonte de recursos. “O que precisamos fazer é dar mais valor às consultas públicas e fazer levantamento cartorial antes. Trabalhamos num país de dimensões continentais, e parece que ainda não descobrimos o caminho das pedras”, diz.

De acordo com o chefe do parque, enquanto a sentença não for publicada ela não tem nenhum efeito prático. A perspectiva é de que o ICMBio recorra imediatamente da decisão. A procuradoria especializada do órgão foi procurada pela reportagem, mas até o fechamento da edição não retornou aos pedidos de entrevista.

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