Celso Calheiros
A pesquisa de Rodrigo foi estruturada com seu orientador, o professor do departamento de Zoologia, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Enrico Bernard. A dupla sabia informalmente da prática da comercialização ilegal de passarinhos em feiras livres. Enrico, por ser mineiro, não identificava as feiras da Região Metropolitana do Recife onde a comercialização poderia estar ocorrendo. Rodrigo sabia o “onde” e contou com apoio para entender o “como”. A dissertação Caracterização do comércio ilegal de animais silvestres em dez feiras livres da Região Metropolitana do Recife chegou a resultados tristes e preocupantes.
Além da câmera com resolução de 640×480 pixels presa na gola da camisa, o pesquisador levou um caderno para anotações. “Eu entrava na feira, ia até onde os passarinhos estavam, identificava e quantificava mentalmente, e depois me afastava para anotar”, explicou.
A identificação e a quantificação são importantes para compreender esse comércio. O passarinho mais raro não é necessariamente mais caro. “O que determina seu valor é o canto”, diz Enrico. A mesma espécie pode sofrer variações agudas de preço. “Um papa-capim, a espécie mais comercializada, pode custar R$ 2,50 ou R$ 250,00, a depender do sexo, da aparência e da atividade exibida”, explica.
No trabalho, dos 2.130 pássaros identificados, 67% pertencem a uma das cinco espécies mais comercializadas nas feiras. Em primeiro lugar está o papa-capim (Sporophila nigricollis); o canário-da-terra-verdadeiro (Sicalis flaveola) vem em seguida; o galo-de-campina (Paroaria dominicana) é o terceiro; enquanto o quarto é o patativa ou golado (Sporophila albogulares ); e o quinto mais encontrado é o sanhaçu-azul, (Tangara cayana). Quando é possível identificar, apenas os machos são colocados à venda. “As fêmeas não cantam, mas não é possível identificar o macho em todas as espécies”, explica Rodrigo.
O cruzamento com estatísticas de outros trabalhos acadêmicos levou à conclusão mais alarmante. Para cada animal colocado à venda, outros três morrem ao longo do processo. Logo, cada papa-capim exibido na feira representa quatro indivíduos extraídos da natureza. Para fazer uma projeção da perda de aves, utilizou-se a amostragem por feira, o número de semanas por ano em que são realizadas e a premissa de que todos os animais exibidos são vendidos. No caso do papa-capim, calculou-se que, por ano, 72 mil são furtados do seu habitat. Apenas no comércio ilegal dessas oito feiras no Grande Recife.
O trabalho também joga por terra mitos benevolentes sobre esse comércio. Os vendedores não prezam seu produto. “Eles são cruéis no trato das aves”, afirma Rodrigo. Dos 2.130 passarinhos avistados, 82% apresentavam sinais de estresse, 1% estava ferido e um estava morto. Em conversas informais, no entanto, o pesquisador soube que os animais mortos são rapidamente descartados, pois os traficantes não querem estragar sua imagem junto aos clientes.
O ambiente das feiras é tenso. Na maior feira observada, no bairro do Cordeiro, é grande a quantidade de pessoas em circulação. Há informantes, desconfiança no ar, olheiros bem posicionados, homens que formam barreiras para ocultar as pequenas gaiolas superlotadas. Não há inocência, todos sabem que praticam um crime previsto na Lei de Proteção à Fauna, sancionado em 1967, aprimorada pelo artigo 225 da Constituição da República.
É tráfico de animais, crime ambiental, mas mesmo assim é um comércio “de família”. Entre situações costumeiras, relata Rodrigo, está “o pai levando o filho para escolher um passarinho ou homens que os compram para presentearem a esposa ou namorada”. Além do comércio ilegal de aves, na feira do Cordeiro é grande a quantidade de vendedores de gaiolas, insumos, frutas preferidas pelas aves e galhos para formar ninhos.
O faturamento é alto. Em Cordeiro, de acordo com a estimativa do trabalho, estimou-se que os traficantes podem apurar só com os pássaros até R$ 340 mil por ano. Nas oito feiras pesquisadas, o total pode chegar a R$ 1 milhão. “É possível que os valores sejam maiores, porque esse resultado foi feito com apenas um observador, nas primeiras horas em que ocorrem as feiras”, diz Rodrigo.
A atividade é matinal. As feiras começam a reunir vendedores e compradores a partir das 5h da matina, em geral aos domingos. Às 7h30 poucos permanecem no local e às 8h já são raros os vendedores. Em nenhuma das 22 visitas a esses pontos comerciais ilegais foi registrada a presença de um policial ou fiscal do Ibama. “As batidas, quando ocorrem, são mais tarde e aí todos já foram embora”.
O levantamento também cruzou informações com o Ibama. Baseado em dados da superintendência em Pernambuco, apurou-se que 82% das apreensões de animais ilegais retirados da fauna é de aves e a maioria de passarinhos. A superexploração levou o Brasil a registrar o maior número de espécies ameaçadas, tanto na lista da Birdlife (2011), como da IUCN (2010). “Um exemplo é a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), considerada extinta na natureza, em grande parte devido ao tráfico ilegal. Outras espécies tendem a seguir o mesmo destino caso essa atividade continue. No Ceará, a captura para comércio ilegal da pintassilva-do-nordeste (Sporagra yarelli) fez com que, hoje, essa espécie seja encontrada apenas no município de Porteiras”, diz o pesquisador.
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