Há mais de dez anos, desde quando iniciou o planejamento da barragem, os índios que habitam a região tocantinense conhecida como “Bico do Papagaio”, se opõem à liberação do projeto do consórcio Eletronorte/ Camargo Corrêa, que recebeu em fevereiro deste ano, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Termo de Referencia (TR) para elaboração do EIA/Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental).
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), os grupos fabricantes de alumínio Alcoa Alumínio e a Billiton Metais — a primeira dos Estados Unidos e a segunda inglesa — são os interessados na energia gerada pela usina, que terá potência instalada de 1.328 MW. Conforme o mesmo plano, a avaliação processual do empreendimento está atrasada.
Cravada no corredor do desenvolvimento Norte-Sul, a Terra Indígena Apinajé, 141.904 hectares (Baixar o mapa aqui) com projeto de ser ampliada, vem desde a década de 50 sofrendo duras intervenções de obras governamentais. Foi cortada por ferrovias (Carajás e Norte-Sul), rodovias (BR 153, Transamazônica e TOs 126 e 134), linhas de tensão (Linhão de Tucuruí), sofreu os impactos de hidrelétricas (Estreito e Lajeado), e se prepara pra chegada da Hidrovia Tocantins/Araguaia, prestes a sair do papel.
Mas nenhum desses empreendimentos gerou tanta preocupação nos Apinajés como a UHE Serra Quebrada, que “comerá” cerca de 14% da TI, exatamente nas margens do Rio Tocantins, onde existem babaçuais e de onde os índios retiram a maior parte do sustento das 1.700 pessoas que vivem hoje nas 24 aldeias.
Sem o estudo, não vai
Segundo o Ibama, o projeto aguarda análise dos estudos para emissão da Licença Prévia (LP), mas o que depender dos índios, técnicos ligados à obra não terão permissão para fazer pesquisas dentro da área. Para eles, o assunto só tem uma reposta, a mesma que vem sendo dada nos últimos anos: “não queremos, e ponto final”, disse categoricamente Cassiano Apinajé, 43 anos, da aldeia São José.
Ele assistiu a liberação da UHE de Estreito e hoje reclama a falta de peixes para alimentar as comunidades. “Agora é só sofrer o impacto, não tem como desmanchar. Por isso ninguém entra aqui. O pessoal chega como os antigos colonizadores, invadindo e desconsiderando a gente. Ninguém aceita a barragem e vamos resistir nem que para isso haja mortes”, indigna-se Cassiano.
Joaquim Preto Apinajé, 70 anos, atual cacique da aldeia Mariazinha, lembra que a mobilização da comunidade contra o projeto teve início em setembro de 2001, com a divulgação da Carta do Povo Apinajé: “A terra para nós é mãe e pai, a terra é quem cria nós e não o governo, pois é dela que tiramos a nossa caça, nossa pesca, os remédios, coletamos os frutos, principalmente o babaçu, que é muito importante para nossa sobrevivência”, dizia a Carta. Ele conta que se a Eletronorte “teimar” em começar construir a barragem, vai haver briga. “Não aceitamos a obra, nossas melhores terras estão sendo ameaçadas”, alerta o ancião.
Alerta
Siqueira pede aceleração de processo
No final do mês de maio, o governador do Tocantins, José Wilson Siqueira Campos (PSDB), esteve em Brasília solicitando ao diretor –geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Anael), a realização de leilões para a construção UHE de Serra Quebrada e Tupiratins. Ele também pediu a retomada das obras da UHE Santa Isabel e que os estudos para a construção da UHE Pau D’Arco, no Rio Araguaia, sejam concluídos. Segundo o governador, estas barragens diminuirão o assoreamento do Araguaia, fazendo naturalmente o controle das enchentes provocadas por chuvas, garantindo assim o curso normal, com preservação das margens e das águas do rio. No encontro também foi solicitado ao diretor geral da Aneel a retomada dos estudos para construção das PCHs – Pequenas Centrais Elétricas e Médias Centrais Elétricas no estado. |
Em 2003, quando começou a ser falar oficialmente da Serra Quebrada o Ibama, em relatório de vistoria, já havia alertado a Eletronorte sobre os trâmites legais para a viabilidade do empreendimento. Na nota técnica nº 010/2003, o órgão aconselhou: “o aproveitamento hidrelétrico de Serra Quebrada possui restrições ambientais, com interferências em áreas indígenas, necessitando, portanto, de regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal, que dispõe sobre os direitos indígenas, para sua viabilização e posterior integração em futuros programas de licitação”. O artigo determina que “as comunidades indígenas têm direito ao usufruto exclusivo às terras que tradicionalmente ocupam (…)”.
Desde então, mesmo sem nenhum estudo na TI, o processo parece correr a passos largos no órgão, e apesar de irredutíveis, os índios receiam não serem mais uma vez escutados.
Em relatório de vistoria do Ibama de 2008, técnicos e representantes da Consultoria Ambiental Themag, responsável pela elaboração do Consórcio Empreender Eletronorte/Camargo Corrêa, acertaram que a elaboração do EIA/Rima deverá condicionar as contribuições da Funai à elaboração dos estudos na TI Apinajé, por meio da emissão de um TR específico.
Longe dos processos, os índios acreditam que os estudos estão avançando sem barreiras, ou ainda, já estejam parcialmente concluídos. “Infelizmente nós não temos voz nesta luta. Entramos em decadência, embora a gente resista, essas obras vêm com uma força terrível, atropela a vida da gente, não respeitam os nossos direitos”, lamenta Cassiano.
Pressionados
Antônio Apinajé mostra a plantação de arroz orgânico para seu filho. “A gente sabe que o desenvolvimento do país não é só construção de barragem”. Foto: Leilane Marinho
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“Durante quatro horas eles bateram pesado, usaram todo tipo de argumento, de que o Brasil precisava de energia e desenvolvimento. Cada liderança falava e a gente não aceitava”, diz Antônio Apinajé, da aldeia São José, onde cultiva junto com a família, mandioca, milho, arroz, feijão e banana, tudo orgânico e com sementes “crioulas”. Atualmente ele está experimentando um novo formato de produção de hortaliças, a horta em mandala.
Antônio lembra as propostas “descabidas” da empresa estatal. “Eles queriam levar nós na usina de Tucuruí, onde eles dizem ter um programa muito bom da Eletronorte, que é muito bonito e bom pros Paracanãs. Falamos que a gente não queria e que esse assunto da Serra Quebrada estava encerrado para nós”.
Este ano, os assédios continuaram, e em um documento formal enviado a Funai e a Eletronorte, os índios reafirmaram não permitir nenhuma visita à TI. “Nós não quer mais falar, é bom deixar isso pra lá. A gente sabe que o desenvolvimento do país não é só construção de barragem, tem o desenvolvimento cultural, ambiental, que o governo tem que olhar”, finaliza Antônio, já alterado.
Área impactada
Os mesmos documentos também afirmam que o local onde será instalada Serra Quebrada é de importância biológica relevante. Num raio de 10km da área que será alagada, encontra-se a Unidade de Conservação Reserva Extrativista Mata Grande. A região também é classificada pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav) como de alta potencialidade de ocorrência de cavernas.
Em 2001, o Centro dos Direitos das Populações da Região de Carajás – Fórum Carajá, disse que Serra Quebrada destruiria áreas importantes para a reprodução de tartarugas, entre outras espécies, como a pantera suçuarana (puma concolor) e jaguatirica ocelot (leopardus pardalis), cujo habitat será atingindo.
“Cada vez que se destrói uma área natural, que é resultado de anos e anos, nunca mais ela se recupera, pois o conjunto gênico de espécies é único”, explica a Dr. Elineide Eugênio Marques, do Núcleo de Estudos Ambientais (Neamb), da Universidade Federal do Tocantins, em Porto Nacional.
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