Em dezembro, a III Expedição Científica à Terra do Meio, organizada em parceria entre pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e WWF-Brasil me levou ao Parque Nacional (Parna) Serra do Pardo, no Pará. Os cientistas que conheci lá são verdadeiros herois anônimos.
Enquanto eu conversava com os pesquisadores no campo muitos mosquitinhos da cor bege cujo tamanho chegava a no máximo um milímetro pousavam e se mexiam insistentemente sobre o meu rosto suado, mãos e bloco de papel, onde eu me esforçava para anotar as informações que pegava. Eles não picavam, mas pinicavam. “Só um segundo, por favor”, eu dizia, antes de passar as duas mãos na cara e pegar rapidamente minha garrafa de óleo de andiroba, um poderoso repelente natural.
Os pesquisadores, então, me olhavam com a calma de quem há muito já superou este tipo de coisa que faz parte do pacote de quem se embrenha na mata. Descobri na convivência com eles e com os mateiros que em situações como esta o melhor a fazer é relaxar. “Tomar picadas significa que você está se integrando à floresta”, me falou sabiamente um bem humorado João Batista Fernandes da Silva, botânico do Goeldi, mais do que a minha idade (32 anos) de experiência no campo, ao bater o olho em uma picada que virou bolha no meu pulso esquerdo e me informar com a mesma tranquilidade que aquilo não era Leishmaniose. E que fique claro aqui: nem sempre os mosquitos foram nossa principal companhia – estar na floresta é muito mais agradável do que parece.
Por trás dos dados
A subida íngreme, o calor e a sede me acompanham enquanto equilibro máquina fotográfica, bolsa, garrafa de água e bloco de papel, foco na trilha entre arbustos com espinhos e, ao mesmo tempo, admiro enlevada uma lasca da Amazônia até então inédita aos meus olhos, cheia de espécies novas e belos cantos de pássaros. João, por sua vez, conta piadas e faz o time todo rir enquanto seu olhar se divide entre o que cortar com o facão e a busca por orquídeas, flor que há décadas norteia suas pesquisas. “Quando vi uma pela primeira vez, minha cabeça começou a girar e eu decidi que faria isso da minha vida”, conta. Diariamente ele prossegue ou sozinho ou com o grupo de botânica do Goeldi.
Depois de duas horas de caminhada, começam a cair do céu as primeiras gotas de um chuvisco que anunciaria uma tempestade daquelas. Indiferente, o trio de botânicos segue caminhando devagar (e com observação atenta), cada um com sua mochila e equipamentos. Dario Amaral passa a fita métrica ao redor do que representa um décimo de 1 hectare. Carlos da Silva Rosário (Carlito) grita: “Astronium gracilis!”. Passa outra fita métrica ao redor do tronco e grita de novo: “107!”. Como desta vez bateu a dúvida, tira um estilingue ‘da cartola’, pega uma pedrinha, mira no galho e atira. A folha cai rodopiando lentamente até o chão. “Tá certo, é isso mesmo”. É quando Antonio Sergio Lima da Silva (Serginho) tira de baixo do braço um caderno de capa azul e anota o nome científico da Muiracatiara.
Serginho tem jeito calmo e, de seus 58 anos, pelo menos 36 passou em trilhas pela Amazônia. “Sem helicóptero nenhum pesquisador chegaria aqui, esta é uma grande expedição” – mas nem sempre boas infraestruturas o acompanharam. Durante a década de 80, para catalogar espécies vegetais na região do rio Juruá, ele chegou a ficar seis dias sem comida tomando apenas caldo de gavião em uma disputa por água com antas na beira de um lago.
Dario também já passou por perrengues. Em 98 partiu para o Marajó, no Pará, para fazer o diagnóstico ambiental de uma área onde seria construída uma hidrovia que ligaria Belém a Macapá (Amapá) e acabou andando 32 km na floresta inundada. “Éramos em 15 pessoas, a chuva não parava de cair, dormi o tempo todo molhado, tínhamos pouco mantimento e o que sobrava de comida, molhava. Para matar a fome comemos porco, mas acabamos todos com disenteria”. Pensa que vida de cientista é fácil?
“É uma paixão pessoal”, resume Crisalda de Jesus dos Santos Lima, especialista em herpetofauna e bióloga da secretaria de educação do Piauí. Sem rodeios, me conta que répteis e anfíbios são espetaculares pela beleza e vocalização, “sem contar que são bioindicadores de qualidade de água”. Todas tardes e noites ela sai pela mata em companhia de Raimundo Rodrigues da Silva, do Goeldi. Juntos, reviram troncos caídos no chão e buracos atrás de cobras, sapos, lagartos. “A maioria das pessoas tem ojeriza a eles por falta de educação ambiental. É preciso que conheçam o papel destes bichos na cadeia alimentar e no ciclo biológico. Eu não tenho medo, tenho respeito”.
Outras virtudes companheiras dos cientistas são a paciência e a persistência. Dante Buzzetti é ornitólogo de São Paulo e sempre sai sozinho pelo Parna. Para identificar aves mantém o silêncio e se vale da bioacústica, ou seja, descobre os bichos pelos cantos – tem boa memória, um ouvido “daqueles” e consegue identificar pelo menos 1300 espécies. Para chegar nisso ouve o canto uma primeira vez, depois vê a ave, estuda seus hábitos e diferentes tipos de canto. “É todo um contexto”, explica. No acampamento, chegou a perder o sono. “Outro dia acordei duas da manhã para gravar o canto de uma coruja, mas quando montei o equipamento, ela parou de cantar e não consegui dormir mais”.
Jansen Zuanon é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e faz parte do time de ictiofauna ao lado de Janice Cunha, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e de Gustavo Martins da Silva, aluno de Janice. Ele contou que, para memorizar os peixes, precisa ver, ver e ver. “Só no rio Madeira, em um ano e dois meses olhei um por um 120 mil peixes”. Com 25 anos na ativa, identifica fácil 500 mil. Depois de uma caminhada de quase duas horas por uma das trilhas da base 1, o trio entra com roupa e tudo no rio, carregando equipamentos. Caminham contra a correnteza (ou não), reviram troncos caídos na água e passam a coletar e identificar espécies.
Suas mãos e pés começam a enrugar. Apesar do calor, depois de horas dentro da água a temperatura do corpo abaixa e bate a sensação de frio. Em silêncio e numa atmosfera de harmonia capaz de acalmar qualquer um, prosseguem. Ao sair do rio Pontal, carregam alguns sacos com peixes e comemoram a alta diversidade. Mais duas horas de trilha com roupas molhadas pela mata e chegam ao acampamento. Trocam de roupa e vão até o laboratório catalogar os resultados do trabalho do dia. E fazer tudo isso cansa, Janice? “Não, eu passo por isso sempre”. Ah, tá. “Contabilizei que, só na Amazônia, já viajei 150 mil quilômetros para fazer pesquisas. Isso dá quase quatro voltas ao redor da Terra” conta Jansen, antes de tomar um golinho de água do Xingu.
O porquê de tudo isso
Frederico Gemésio e Alan Nilo da Costa, da Universidade Federal de Goiás (UFGO), são especialistas em mamíferos, se conhecem desde pequenos, trabalham juntos e formam uma dupla que vê muitos bichos ou indícios deles onde a maioria das pessoas só consegue enxergar um amontoado de verde. Durante a viagem, Fred tomou chuva no meio das trilhas, furou uma das mãos com espinhos e teve a calça rasgada. Por aquelas bandas identificou paca, tatu, anta, cateto, onça pintada. Para conseguir o feito pega em cocô e depois cheira, acha rastros, pegadas, tocas, restos de ossos, vê ou ouve os animais, faz focagem noturna, conversa com mateiros, instala câmeras fotográficas em pontos estratégicos.
Fred carrega no peito a esperança de que todo este trabalho não seja em vão e confessa que às vezes desanima. “O maior desafio não é fazer tudo o que fazemos para encontrar espécies. É trabalhar para não adiantar. Se a gente falar que encontrou o saci-pererê na área onde querem construir Belo Monte, ainda assim vão querer fazer esta usina”, diz. Ele quer que as futuras gerações um dia tenham o privilégio que a equipe desta expedição teve, de poder andar pela mata preservada. Este é um objetivo comum entre todos os herois anônimos que conheci. Que todos possam perceber de perto que a natureza não é implacável, mas curiosa, dinâmica, destemida e plena.
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