Reportagens

Após 10 anos, uma avaliação cautelosa

No aniversário do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, ambientalistas comemoram avanços, mas alertam para desafios. 

Felipe Lobo ·
17 de julho de 2010 · 14 anos atrás

As belezas do Parque Estadual do Cristalino, no Mato Grosso (foto: Daniel Beltra/Greenpeace)
As belezas do Parque Estadual do Cristalino, no Mato Grosso (foto: Daniel Beltra/Greenpeace)
Há exatos dez anos, no dia 18 de julho de 2000, os brasileiros ganhavam um presente para lá de aguardado: após inúmeras e tenebrosas primaveras, a Lei 9.985 foi assinada e instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Do alto de sua primeira década, o SNUC, como é popularmente conhecido, convive com a glória de ter sido um dos pilares responsáveis por alçar o Brasil até o topo do ranking de maiores criadores de áreas protegidas, ao mesmo tempo em que sofre com a falta de recursos financeiros e humanos necessários para a implementação das mesmas.

Embora seja ainda um pequeno rapaz à beira da juventude, o SNUC deve ser considerado um jovem adulto. As discussões a respeito de sua confecção começaram ainda em 1988, época em que a atual Constituição Brasileira foi lançada. Em seu artigo 225, ela já falava sobre a importância de cuidar do patrimônio natural. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”.

A expectativa principal na época em que se começou a pensar acerca de uma lei que agregasse os diferentes tipos de unidades de conservação (que já existiam, em sua maioria, mas estavam sob controle de diferentes órgãos, como o IBDF – antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) era dar diretrizes para a criação e gestão, além de aproximar os níveis de governo: municipal, estadual e federal. Em teoria, a intenção era ótima, mas esbarrava na falta de interesse dos parlamentares. É o que diz Claudio Maretti, Superintendente de Conservação do WWF-Brasil e que acompanhou todo o processo.

“Era um tema secundário na agenda, infelizmente. Um segundo componente que ajudou a atrasar foram os conflitos de grande intensidade entre dois grupos, que de forma caricata poderíamos definir como preservacionistas e socioambientalistas. Enquanto os primeiros achavam que só valia criar unidades de proteção integral, os outros defendiam que as comunidades locais eram os principais responsáveis pela conservação. Mas não se pode resolver tudo na lógica de que uma unidade precisa ser igual à outra. Este debate foi prejudicial para levarmos à sociedade brasileira uma percepção melhor do que são as UC’s e buscar maior apoio”, assegura.

Benefícios claros…

Após a sua legitimação, o SNUC apresentou dois grandes grupos de unidades de conservação (proteção integral e uso sustentável) e, dentro deles, doze categorias – cada uma com particularidades e objetivos específicos. Mas, principalmente, a lei trouxe, ao longo dos últimos anos, uma série de benefícios para a conservação dos ecossistemas e, em conseqüência, dos recursos ambientais. Um deles, explica Raquel Carvalho, da campanha Amazônia, do Greenpeace, é a obrigatoriedade de fazer estudos prévios para a criação de uma UC. “Antes isto era feito à base de canetada”, diz.

Maretti, do WWF, concorda e assegura que este tipo de análise de áreas prioritárias para a proteção, além da avaliação fundiária, por exemplo, são argumentos suficientes para garantir que vale a pena criar uma unidade de conservação, mesmo se ela não for implementada. É claro, afirma, que criar instrumentos para a sua efetividade é fundamental, mas o trabalho não é totalmente perdido caso isto não seja possível.

“O SNUC também traz um conjunto de áreas que se complementam, independente da instância que a criou. Isso prevê, em teoria, um certo nível de articulação entre os diferentes setores de poder. Ele ressalta que são necessárias consultas públicas para ouvir a sociedade, além dos conselhos gestores de cada unidade. Vale lembrar dos recursos originais de compensação ambiental. Antes havia um mínimo de 0,5% dos recursos pagos por grandes empreendimentos para neutralizar os impactos que deveriam ser usados em áreas protegidas. Hoje, só há o teto máximo”, avalia Raquel Carvalho.

Nem só de boas novidades, porém, vive o SNUC. Talvez em virtude do nível de expectativa que tantas mudanças positivas causaram. Fato é que, por exemplo, existem lacunas no gerenciamento do sistema como um todo. Uma delas é a gestão compartilhada. Embora exista quase unanimidade quando o assunto é a importância deste item para a preservação da natureza, há quem pense que ela deveria ser feita de modo diferente.

…Problemas idem

Desmatamento dentro da Resex Verde para Sempre, no Pará (foto: Rodrigo Baleia/Greenpeace)
Desmatamento dentro da Resex Verde para Sempre, no Pará (foto: Rodrigo Baleia/Greenpeace)
É o caso de Carvalho. De acordo com a pesquisadora do Greenpeace, o esforço conjunto de gestão é fundamental, mas algumas alterações podem melhorá-lo. “Em geral, existem associações ou grupos que já trabalham há anos em determinada área, e conhecem bastante a necessidade dali. Mas o SNUC estabelece que a entidade gestora será escolhida a partir de uma licitação, o que abre espaço para que instituições sem qualquer relação com a área comecem a trabalhar nela”, diz.

Neste ínterim, em recente artigo, o deputado federal Sarney Filho (PV) ressalta que ainda tenta aprovar o Projeto de Lei 4.573, de 2004, com vistas justamente a regular “o relacionamento entre o Poder Público e o Terceiro Setor para fins de co-gestão de unidades de conservação no país”. A ideia é transferir atribuições para OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e aproveitar as suas capacidades técnicas.

Os maiores problemas, entretanto, se baseiam na falta de recursos financeiros para garantir a eficácia das unidades de conservação criadas, assim como no baixo índice de técnicos capacitados. No mesmo documento, Sarney Filho (PV) escreveu: “A consolidação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação encontra ainda sérios obstáculos na insuficiência de recursos humanos, em número e em qualificação, e na ausência de recursos financeiros para a regularização fundiária das áreas protegidas, o que compromete a sua adequada gestão”.

Claudio Maretti tem opinião semelhante. Para ele, o debate atual deveria ser a adequação de caminhos necessários para gerenciar o sistema com submetas, como unir o turismo, as pesquisas, comunidades tradicionais, em torno de ferramentas capazes de agregar valor para as unidades de conservação, como mosaicos ou corredores ecológicos. Isto significa, por exemplo, não apenas criar cada vez mais áreas protegidas, mas implementar as que já existem e pensar em conectar fragmentos, salvar espécies e assim por diante.

“De 2003 a 2009, o Brasil protegeu muito mais áreas terrestres do que o mundo inteiro. Mesmo assim, não cumprimos nossas metas de manter em unidades de conservação, até 2010, 10% de todos os biomas, com exceção da Amazônia, que deveria ser 30%. Mas espero que, na 10a Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica (COP10), a ser realizada em Nagoya, no Japão, este compromisso cresça para 20% até 2020 para os biomas, com exceção da Amazônia”, avalia o superintendente do WWF-Brasil.

Decreto polêmico

Ele lembra, no entanto, que o aumento desta salvaguarda não veio acompanhado a acréscimo de orçamento, e tampouco de equipe capacitada nos órgãos públicos – principalmente nos municipais. Mesma opinião tem o diretor de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João de Deus Medeiros. “Avalio que nesses 10 anos ainda não ocorreu uma adequada adesão e incorporação do poder público municipal no SNUC, o que é uma lacuna séria, devendo se aprimorar a estratégia para reversão desse quadro”, diz.

Esta falta de fiscalização, aliada ao baixo índice de implementação em algumas unidades, gera pedidos de redução e até revogação de algumas áreas. São os casos, por exemplo, dos Parques Nacionais do Itatiaia (RJ) e da Serra do Tabuleiro (SC). “Mas isto transcende a legislação, é problema de governança. Há uma regulamentação bem completa no Brasil, e o governo não faz cumprir. Quando, por exemplo, junta-se uma fronteira de desmatamento com uma UC sem implementação devida, a estratégia de conservação não acontece. Hoje a Floresta Nacional do Jamanxim, na Amazônia, é a que mais queima no país”, avisa Carvalho.

Ameaças ao SNUC, porém, não faltam. Um caso notório é o Decreto 7.154, assinado pelo presidente Lula em abril deste ano e que permite os estudos de potenciais hidrelétricos dentro de Áreas Protegidas. Neste caso, as discussões são intermináveis. É o que provam os quatro entrevistados pelo O Eco para esta reportagem. Enquanto Maretti respeita que não se pode impedir levantamentos topográficos e geodésicos em uma UC, uma vez que ela é um “espaço de estudo por excelência”, ele também critica a possibilidade de discutir hidrelétricas em áreas protegidas de forma integral. Opinião igual tem Raquel Carvalho, que critica a opção.

João de Deus Medeiros vê a questão sob outro ângulo. “A lei do SNUC prevê a prospecção sobre formas de uso sustentável dos recursos naturais dentro de Unidades de Conservação da natureza, e o Decreto 7154 propõe a regulamentação de uma destas atividades”. Ele completa dizendo que a atividade de estudo não pode causar impactos sobre o espaço.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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