“Uma pequena gentileza”. Foi assim que uma organizadora do Festival do Rio de Cinema, iniciado no último dia 21, descreveu o gesto do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, em relação aos espectadores do evento. Era sexta-feira, 22 de setembro, e ela apresentava a primeira sessão aberta ao público carioca do documentário “Uma Verdade Inconveniente”, o filme-panfleto sobre aquecimento global estrelado pelo político norte-americano. Gore gravou uma curta mensagem à platéia que ocupou menos da metade dos 590 lugares oferecidos pelo Odeon BR, na Cinelândia, centro do Rio. Uma sessão pouco concorrida de um festival que este ano conta com mais de 300 produções e, não raro, tem gente sentada no chão ao longo de seus corredores.
No vídeo exibido antes do filme, o político convocou os espectadores a deixarem de lado as diferenças para se unirem em torno das medidas anti-efeito estufa. Pediu que o público ficasse na sala durante os créditos finais, quando são dadas dicas do que cada um pode fazer individualmente em prol da causa. E chamou as pessoas a espalharem a mensagem entre amigos e familiares, convidando-os a verem o filme após a data oficial de estréia por estas bandas, 3 de novembro. Uma introdução bem ao tom do documentário, verdadeira iniciação aos mistérios do aquecimento global. Mistérios que o homem quer pôr à luz a qualquer custo, espalhando sua palavra aos sete ventos, a quem estiver disposto a ouvir.
Candidato derrotado na controversa eleição de 2000 para presidente dos EUA, Gore começou a partir daí uma peregrinação pelo mundo com o intuito de conscientizar a população para a urgência do tema em palestras ministradas com um show de slides. De lá para cá, tornou-se um ícone da luta contra o aquecimento global. Praticamente um guru. A imprensa especializada noticia cada nova expressão empregada pelo político, cada passo, cada piscadela. E Gore não faz por menos – dedica-se com entusiasmo à causa e, no filme, chega a se referir a ela como uma “missão”. Dá ou não para sentir pinceladas quase religiosas nesse quadro? Gore quer te converter – e é grande a chance de ele ter sucesso.
Arrepios
“An Inconvenient Truth” (no original) é composto basicamente pela filmagem de uma palestra do convertido ambientalista. Quem acompanha o noticiário ambiental pode não se surpreender com boa parte das informações passadas. Mas a não ser que se tenha nervos de aço ou sangue de barata, é impossível conter os arrepios a cada gráfico e imagem mostrados. Gore vai desde explicações básicas de como funciona o efeito estufa até a mesma ladainha de sempre quanto às suas nefastas conseqüências: pólos derretendo, subida do nível do mar, ondas de calor, extinção de espécies, sede, fome, furacões, tufões, epidemias… enfim, algo muito próximo de um apocalipse bíblico. A projeção de quanto CO2 haverá na atmosfera daqui a 50 anos se o ritmo de emissões continuar o mesmo é de provocar lágrimas nos olhos dos mais sensíveis. Tampar a vista nessa hora pode ser uma sábia decisão a favor do sono tranqüilo.
Embora ele se concentre na exposição do que é o aquecimento global e queira provar que o fenômeno já é realidade, apesar da relutância de céticos (segundo Gore, todos ligados à indústria petrolífera), ainda assim a mensagem final é de que é possível mudar a situação. Assistir à palestra é como estar em uma aula daquelas que ecoam por muito tempo em nossa cabeça.
O documentário tem direção assinada por Davis Guggenheim, de carreira razoavelmente extensa na TV, mas que tem em “Uma Verdade…” seu primeiro sucesso comercial (o filme já arrecadou mais de 24 milhões de dólares). Funciona para a cadência do filme a sua opção de intercalar os blocos maiores, em que Gore desenvolve seus argumentos, com passagens mais lentas, quando alguns fatos marcantes de sua vida pessoal e política são contados no tom confessional de quem está cansado da luta, já levou muita pancada, mas não desiste.
Um futuro ex-presidente?
É nesses momentos, entretanto, que o filme ganha um quê de propaganda política. Afinal, apesar de Gore se apresentar no filme como “o ex-futuro presidente dos EUA”, têm crescido os rumores de que ele venha a concorrer à presidência em 2008. Hoje presidente de uma firma de investimentos e de um canal interativo de TV a cabo, membro da diretoria da Apple Computer e conselheiro extra-oficial da administração da Google Inc., Gore tem sido visto como o mais forte concorrente à disputa com a senadora Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata.
Segundo uma reportagem recente da revista Grist, o ambientalista lança em maio de 2007 o livro “The Assault on Reason” (“O Assalto à Razão”), sobre a incapacidade de políticos que não se mostram dispostos a “deixar os fatos guiarem suas decisões”. E há poucos dias, em discurso na Universidade de Nova York, adotou um tom diferente da descontração que impera em “Uma Verdade…”. Cobrou o congelamento imediato das emissões de carbono e se focou quase que inteiramente em soluções para o problema – que, no filme, ocupam apenas um minutinho final, ditas por alto, sem detalhamento algum. Talvez um sinal de que esteja, ele mesmo, disposto a botar a mão na massa se tiver a oportunidade de chegar à Casa Branca.
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