Exatos 106.580 quilômetros quadrados da floresta amazônica foram encontrados devastados nos assentamentos do Incra criados até 2002. Trata-se de uma área superior ao estado de Pernambuco (em cinza, no mapa ao lado). Esse é um dos resultados de um estudo inédito do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), ainda em fase de conclusão.
O estudo pretende estimar a contribuição da política de assentamentos da reforma agrária no desmatamento da Amazônia. E, segundo o Imazon, a área identificada é equivalente a 15,2% de tudo o que já foi derrubado na região. Os dados não indicam que o Incra seja necessariamente responsável por todo esse desflorestamento, porque as análises não contaram mapas antigos, de antes e depois dos primeiros assentamentos. Mas para quem conhece o histórico do instituto, a associação entre reforma agrária e desmatamento parece clara.
Os 132 assentamentos de Rondônia, por exemplo, devastaram 71% de suas florestas, que originalmente ocupavam 41.860 quilômetros quadrados. No ranking dos estados, o Pará ocupa o segundo lugar, pois destruiu, em seus 406 assentamentos, 52% das florestas que existiam. Mato Grosso vem em seguida, com 48% de destruição em 34.766 quilômetros quadrados de glebas.
O estudo do Imazon, assinado pelos pesquisadores Amintas Brandão Jr. e Carlos Souza Jr., combinou os mapas de assentamentos do Incra com imagens de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e revelou ainda que, entre 1997 e 2002, em média 76% de todos os lotes para reforma agrária na Amazônia estabeleceram-se onde havia floresta em pé. Apenas 24% deles foram criados em áreas já desmatadas.
Isso não é um problema para Marco Aurélio Pavarino, coordenador de Meio Ambiente do Incra. Ele diz que o fato de haver cobertura florestal não impede o assentamento. “No ano passado, por exemplo, 75% dos assentamentos foram diferenciados, ou seja, agroextrativistas, projetos de desenvolvimento sustentável ou em unidades de conservação”. Pavarino informa que, daqui pra frente, os novos assentamentos do Incra não serão mais aqueles que incentivavam limpeza total da área — coisa que acontecia até bem pouco tempo atrás. E garante que o instituto vai recuperar as áreas já impactadas pelos assentamentos. Pelos números do Imazon, trabalho é o que não vai faltar.
Desastre sócio-ambiental
Exemplos de projetos de assentamentos catastróficos para o meio ambiente (para não falar nos prejuízos aos próprios assentados) existem aos montes pelo país. Aqui mesmo em O Eco, o ornitólogo Fabio Olmos justificou com vários casos como a união de técnicas rudimentares de aproveitamento do solo, a concessão de contratos de compra e venda de terras em áreas protegidas, a geometria inflexível dos assentamentos e o desrespeito ao zoneamento estadual transformaram Rondônia, Tocantins e Maranhão em colchas de retalhos.
O ambientalista Sergio Ricardo de Lima, que passou sua infância num assentamento do Incra próximo a Altamira, no Pará, conta que, como tantas outras famílias, a sua saiu do Rio Grande do Norte no início da década de 70 atraída pela propaganda militar de colonizar a Amazônia. Ele guarda lembranças de árvores queimando por mais de quinze dias sem parar e de ver seu pai planejando mutirões com outros assentados nordestinos para conseguirem escoar o que produziam no meio da floresta derrubada, sem qualquer infra-estrutura. Em dez anos, o projeto de colonização e reforma agrária degringolou. Quase todos os assentados venderam suas terras para fazendeiros paranaenses, que até o começo dos anos 90 haviam transformado as áreas de agricultura familiar em extensas pastagens para pecuária. “Os produtores empobreceram e muitos se mudaram para as favelas de Altamira”, conta.
Recentemente, Evandro Ferreira, agrônomo da Universidade Federal do Acre (Ufac), denunciou em seu blog Ambiente Acreano como está a situação da cobertura vegetal dos lotes de um projeto de assentamento rural em Brasiléia, no leste do estado. Com base em imagens de satélite, ele mostra que nem as áreas de reserva legal são respeitadas. Além disso, muitos assentados vendem seus lotes antes do tempo mínimo requerido pelo Incra, de dez anos, retornando ao instituto com solicitação de novas terras. Para Ferreira, o Acre está trilhando um caminho sem volta. “Sabe aquele ditado ‘Eu sou você amanhã’? É como o Acre deveria se enxergar em relação à vizinha Rondônia”, diz.
Segundo a engenheira agrônoma da Ufac, Sumaia Vasconcelos, grande parte dos assentamentos no Acre apresenta menos que 50% da reserva legal e mata ciliar totalmente destruída. A imagem de um assentamento no município de Acrelândia não deixa dúvidas. Sumaia, que trabalha com monitoramento de queimadas, diz ainda que nos municípios onde existem projetos de assentamento o número de focos de calor detectados por satélite é bastante elevado. “No leste do estado, onde aconteceram 40 dos 60 assentamentos no ano passado, foram registradas mais de 80% das queimadas do Acre”, informa. E a maior parte das áreas com pastagem também está nessa região, que já tem bacias hidrográficas seriamente comprometidas.
“Se os assentados não tiverem orientação e acesso a técnicas mais avançadas, eles vão continuar com a prática de corte e queima”, opina Idemê Gomes Amaral, engenheira agrônoma e especialista em solos do Museu Goeldi, de Belém. Para ela, a falta de apoio para o cultivo e de suporte para o escoamento da produção, além da precariedade das estradas, motivam os pequenos produtores a deixar suas terras logo depois de serem assentados pelo Incra. E isso tem reflexo direto na manutenção das áreas de reserva legal. “Quando eu trabalhava para o Incra, na década de 70, era comum ver que, com dificuldades financeiras, um produtor vendia parte de sua terra para outro — geralmente a parte da reserva legal. O comprador, por sua vez, fragmentava ainda mais o terreno e vendia a sua metade para outro. Aí o percentual de floresta ia diminuindo rapidamente”, conta Idemê.
Nos últimos dez anos, dois terços das terras disponibilizadas para reforma agrária no país foram na Amazônia. O coordenador de Meio Ambiente do Incra garante que essa tendência foi revertida. “A região Norte ainda tem o maior número de terras públicas no Brasil e é a área que tem mais demanda por movimentos sociais organizados. Mesmo assim, dos 1.735 projetos de assentamento criados no país entre 2003 e 2005, apenas 26% referiam-se à região amazônica”, explica Marco Aurélio Pavarino. Gilney Viana, secretário de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA), acredita que esse número é muito superior. “A Amazônia continua exercendo forte atração para migração. Temos visto um adensamento demográfico nas áreas de fronteira agrícola”, explica.
Promessas
O Incra garante que, desde 2001, sua postura em relação aos impactos ambientais dos assentamentos mudou. De acordo com Pavarino, em 2005 o instituto passou a acompanhar a situação florestal dos lotes através da inclusão de parâmetros ambientais em seu banco de dados, o Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra). Agora, ao definir um assentamento, o Incra tem em seus registros exatamente o que há de Áreas de Preservação Permanentes (APPs), reserva legal e incidência de espécies endêmicas, por exemplo. Até porque cerca de 90% de todos os assentamentos são georreferenciados, segundo informa Pavarino.
Mas, na prática, não funciona bem assim. “Esse sistema ainda está em implantação e apenas um pequeno percentual dos assentamentos conta com uma avaliação desses fatores ambientais”, diz. Ele conta que, além da licença ambiental obrigatória emitida pelos órgãos estaduais, os assentamentos no futuro serão atendidos por gestores ambientais lotados nas superintendências regionais. Por enquanto, a figura que se preocupa formalmente com o meio ambiente no Incra é o “assegurador ambiental”, que deve orientar o assentado a usar sua área seguindo estritamente diretrizes sobre APP, reserva legal e áreas agriculturáveis.
Se a postura em relação aos próximos anos promete se diferenciar, sobre os milhares de assentamentos que já provocaram impactos ambientais o Incra tem a meta de regularizá-los, concedendo-lhes licenças ambientais. Em 2003, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MMA e o Ministério Público Federal para que todos os assentamentos, dentro e fora da Amazônia, tivessem licença ambiental dentro de três anos. O prazo termina em outubro próximo e, até agora, Pavarino estima que metade dos cerca de 4.800 projetos que se enquadram nos termos do TAC tenham dado entrada no processo de licenciamento. “Estamos dispostos a discutir a situação fundiária desses assentamentos antigos, recuperar as áreas devastadas, negociar compensações ambientais e, em casos extremos, remanejar pessoas”.
Pavarino informa que o Incra tem em mãos 26 milhões de reais para recuperar áreas degradadas e assentar em locais impactados em todo o país. Só não se sabe de que forma esse dinheiro vai ser usado. Aliás, não é porque a Amazônia ainda conserva a maior parte das florestas brasileiras que não existem projetos de assentamento ameaçando outros ecossistemas pelo Brasil. Loteamentos dentro de áreas com as raríssimas florestas de araucárias no sul, ou no entorno de unidades de conservação como o Parque Nacional da Serra da Bodoquena e o Parque Estadual das Várzeas do Rio Invinhema, ambas no Mato Grosso do Sul, ou a Reserva de Poço das Antas, no Rio, são apenas alguns dos exemplos de que, no gabinete, o Incra pode até estar traçando estratégias ambientalmente mais responsáveis. Mas elas ainda não chegaram no campo.
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