O Ibama concedeu nesta sexta-feira, 29 de abril, a licença prévia para o projeto de transposição do Rio São Francisco. Isso significa que o estudo e o relatório de impacto ambiental do projeto (Eia-Rima) foram aprovados. Com o tão esperado sinal verde, o Ministério da Integração Nacional já anunciou que vai lançar imediatamente o edital de licitação para escolher as empresas que vão executar as obras. Em 45 dias deve concluir essa etapa. A partir daí, só faltará a licença de instalação do Ibama para dar início ao mega-empreendimento.
O governo tem pressa, mas o projeto não deve ter vida fácil. Parlamentares, Ministério Público, governos estaduais e organizações da sociedade civil estão intensificando as ações de resistência à transposição.
Sexta-feira foi mais um dia barulhento. Na pequena e devastada Pirapora (MG), líderes comunitários, universitários, parlamentares de cinco estados e até religiosos se reuniram numa mobilização promovida pela Comissão Interestadual Parlamentar de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (Cipe). A Cipe, que conta com deputados e senadores de Minas, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, decidiu solicitar formalmente aos governadores de seus próprios estados (doadores das águas da transposição) e dos estados receptores (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba), horários para pronunciamentos na televisão sobre os danos sociais, econômicos e ambientais que uma intervenção do porte da transposição pode provocar na região. Estrelando a resistência parlamentar à transposição, dois líderes de extremos políticos opostos estiveram em Pirapora: o presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL) e a onipresente Heloísa Helena (P-Sol-AL). Calheiros prometeu entregar o manifesto da Cipe diretamente ao presidente Lula.
O Ministério Público também dá sinais de que agora não é hora de relaxar. A promotora de Justiça da Bahia Luciana Khoury foi rápida, simples e direta em sua apresentação no 5º Congresso Brasileiro do Ministério Público do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro. Mostrou, ponto a ponto, as principais falhas do Eia-Rima que o Ibama acaba de aprovar. Entre os maiores absurdos elencados pela promotora está a interpretação de que quase toda bacia do São Francisco é área de influência indireta das obras, e por isso não foi estudada de forma aprofundada. Segundo ela, o Eia-Rima limitou-se a destrinchar o que pode acontecer ao longo dos eixos da transposição, ou seja, no caminho entre as estações de captação e de recepção. Os impactos da área de abrangência da bacia foram subestimados e não estiveram presentes nos debates com a população. “Não se sabe, por exemplo, o que pode acontecer com a frágil avifauna da caatinga, já que nada foi inventariado. Também não foram discutidas propostas alternativas à grandiosidade da transposição, embora se saiba que medidas bem menos danosas ao meio ambiente, como a instalação de cisternas e barragens subterrâneas em pontos específicos, poderiam sanar o problema de abastecimento de água a quem realmente precisa”, afirmou Luciana Khoury. O secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, endossa a promotora, dizendo que cerca de 80% dos recursos do São Francisco vão servir diretamente à irrigação e criação de camarão. “O Eia-Rima não estuda as conseqüências ambientais nas dimensões adequadas. Atém-se a falar da área de influência dos canais, mas a bacia doadora foi absolutamente ignorada”, argumenta o secretário.
Essas e tantas outras críticas que há meses acompanham o questionável processo de licenciamento ambiental das obras da transposição motivaram dezenas de ações civis públicas contra o projeto. A demanda foi tanta que os Ministérios Públicos Estaduais decidiram criar uma coordenadoria interestadual para lidar com a questão do São Francisco. A intenção é integrar as ações e buscar soluções rápidas e comuns. Mesmo assim, nada parece deter o precioso projeto acalentado por Lula e Ciro Gomes.
A questão das audiências públicas foi patente. De acordo com a resolução 01/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), as consultas populares são requisitos indispensáveis ao processo de licenciamento. Mesmo assim têm sido encaradas como mera burocracia. Marcadas com pouca antecedência, com horários e datas consideradas ruins, as consultas claramente desconsideravam a participação da população. Entre o final do ano passado e o início deste ano, a Justiça baiana tentou impedir que elas acontecessem no estado por julgar precipitado realizá-las, mas a liminar foi derrubada. A cada audiência marcada, manifestantes contrários ao projeto tentavam impedi-la. Em muitos casos, conseguiram. Nada que abalasse o governo: o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ibama consideraram todas elas realizadas, deram os episódios por encerrados e levaram adiante o processo a toque de caixa.
Para o Ministério Público, se o licenciamento continua mesmo sem o cumprimento pleno de uma das exigências, trata-se de uma ilegalidade. “Apesar de tudo isso, infelizmente nunca se sabe o que sai da cabeça do juiz”, desafaba o procurador da República do Paraná João Akira Omoto.
Os governos dos dois principais estados da bacia do São Francisco, Minas e Bahia, também esboçaram um “levante federativo”, posicionando-se publicamente contra a transposição e garantindo que por suas terras ela não passaria. Tiro de festim.
Segundo José Carlos Carvalho, ex-ministro do Meio Ambiente que enfrentou resistência semelhante ao projeto no governo Fernando Henrique Cardoso, a decisão de realizar a obra é exclusiva do presidente Lula. “Por mais que tenham se manifestado contra a transposição, os estados não têm poder nenhum para evitá-la”, explica. No entanto, ele avisa que as organizações sociais, o Ministério Público e os parlamentares vão continuar pressionando o governo a adotar uma alternativa mais sustentável para a bacia do São Francisco.
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