A palavra “trek” vem do afrikaans, um dos onze idiomas oficiais da África do Sul. Ela ganhou fama em 1836, quando uma leva de afrikaners descontentes com a soberania inglesa sobre a colônia do Cabo empacotou seus pertences e pôs os pés na trilha em busca de outras paragens para fundar um país independente.
Palmilharam muito chão até sossegarem nas planícies cortadas pelo rio Orange e nas terras além do rio Vaal, onde se estabeleceram e criaram duas novas Repúblicas, o Transvaal e o Orange Free State. Eventualmente, esses dois países se juntariam às colônias inglesas do Cabo e do Natal para, em 1910, formar a União Sul-Africana.
O Grande Trek deixou marcas culturais no país. Desde então, caminhar na natureza passou a ser parte da afirmação da nacionalidade afrikaner, da sua ligação com o solo africano e da consequente rejeição da Europa como pátria mãe.
Talvez por esse motivo. Haja tantas trilhas de longo curso na África do Sul. Não basta trilhar, há que trilhar muitos dias e, assim, despertar no íntimo a africanidade conquistada a duras pernas.
Com esse pressuposto em mente Sandra, Ivan e eu acordamos em uma manhã ensolarada e partimos para o nosso Great Trek imbuídos do espírito das Bandeiras, que é o seu equivalente brasileiro.
Acordamos cedo. Partir cedo é outra coisa. Por alguma razão que não sei explicar, mas que aprenderia a respeitar nos próximos dias, Ivan tem extrema dificuldade em partir. Quando estamos todos prontos aparece sempre alguma urgência, da qual todas as vezes acabo convencido por uma lábia de deixar vendedor libanês no chinelo!
No papel, o percurso não parece longo, são apenas quinze quilômetros. A realidade é outra. A trilha é um tobogã de intermináveis sobes e desces, sem sombra alguma. O que vale, é que seu traçado faz o esforço valer a pena.
Logo na saída, ainda na varanda do abrigo, temos um colírio para os olhos. A vista dali é simplesmente deslumbrante. O Local não foi escolhido por acaso. O grosso da navegação entre a Ásia e a Europa passa pelo Cabo da Boa Esperança. Por isso mesmo o local era um dos prediletos dos submarinos alemães incumbidos de afundar embarcações destinadas a abastecer a Inglaterra na Segunda Guerra Mundial. O abrigo Erica, onde pernoitamos, foi construído nesse período para alojar a guarnição da bateria cuja missão era localizar e por a pique esses submersíveis. Não há ponto em toda a Península que comande vista mais ampla. A Guerra acabou mas a vista é eterna.
Do abrigo descemos até o nível do mar. Logo fomos saudados por uma avestruz em seu passeio matinal à beira da praia. Em seguida é um par de antílopes que nos cumprimenta desconfiado. Olhamos a água convidativa, mas ainda é cedo. Seguimos em frente.
Após duas horas de caminhada, começamos a subir. O sol na moleira é inclemente, queima nossas nucas desnudas. Com tês horas e meia de chão chegamos ao Centro de Visitantes de Buffelsfontein, alojado na sede de uma fazenda bicentenária, que, de cara, conquista o visitante por sua elegante arquitetura colonial.
Fazer a trilha passar pelo Centro de Visitantes é uma bela estratégia de manejo. Convida o excursionista a ler sobre a história, as atrações e os desafios do Parque que percorre. Ali, enquanto descansamos à sombra e saciamos a sede com um refresco recém comprado, vamos aprendendo sobre os esforços de renaturalização do Parque. Em gráficos bem elaborados está explicado o processo de reintrodução de antílopes na Reserva do Cabo da Boa Esperança. Também ali estão explanados os males causados por espécies exóticas como o gato doméstico, a cabra himalaia , o eucalipto e a acácia, que sem controle, poderiam se expandir sobre o ecossistema de fynbos, que é o menor e mais diverso reino floral do planeta.
Terminado o descanso, seguimos nossa rotina de sobe e desce que, por algum imponderável, parece ter muito mais sobe do que desce. Depois de mais cerca de hora e meia chegamos a “Venus Pool”, uma piscina natural, em meio ao litoral rochoso. Não é preciso convite. Em um instante estamos todos dentro d´água.
Findo o banho, é necessário subir de novo. O trecho é íngreme. Para evitar a erosão, o manejo adotado alterna longos zigues-zagues com degraus. Isso tudo escorado em canais de drenagem reforçados, nos pontos mais críticos, com concreto disfarçado atrás de blocos de pedra. O resultado não poderia ser melhor. Apesar de seu uso intensivo e constante, a trilha não apresenta sinais de degradação.
Já no meio da tarde, chegamos ao monumento erigido pelos colonizadores flamengos a Vasco da Gama, que foi um dos primeiros marujos a dar a volta redonda ao Cabo. Do alto da minha tricoloridade opino que a obra é boa mesma para botá fogo, mas é verdade que oferece boavista. Apertando os olhos dá até para ver a América (ou quase). Ivan opina que morro rebaixado que vemos dali é mesmo americano. Acha que é Macaé. Não interessa. Seguimos passo. E põe passos nisso. É uma dureira. Parece que não para de subir nunca.
Finalmente,depois de cinco horas e meia de cabritada, chegamos ao pico Judas de cujos 319 metros de altitude já dá para ver o abrigo de Smistwinkel Bay, construído no terreno ocupado por sub-sede administrativa do corpo guarda-parque do PARNA da Montanha da Mesa. Ivan e Sandra sentam-se para admirar a vista. Deixo-os para trás. A caminhada estava ótima, mas quero sombra e água fresca.
Na próxima coluna eu conto mais.
*Com participação de Sandra e Ivan Amaral
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